segunda-feira, 9 de novembro de 2009

ARGEL II - OS DIAS E AS MIRAGENS (1ª parte)

O velho 727 da Air Algérie descreve uma curva apertada e quase acrobática, 360º que causam ansiedade e mal-estar em alguns passageiros. O avião vai descendo depressa, inclinado sobre o lado direito o que nos faz trocar, por momentos, a vista da terra pela do mar, poucas centenas de metros mais abaixo. Alguns minutos mais tarde aterramos, com rapidez e brusquidão, na pista da aeroporto Houari Boumediene, em Argel. Quando saímos, já o aparelho está rodeado por um grupo de militares de metralhadora em punho, olhando desconfiadamente a área em volta. A que país vim eu parar, é a primeira pergunta que faço, sem esperança de ter resposta.


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Não teria vindo a Argel, se tivesse dado ouvidos aos conselhos que me deram. Um país em ebulição, uma guerra civil latente e os atentados não fazem de Argel o melhor dos sítios para fazer turismo ou dissertar sobre arqueologia.


E, contudo, a violência pouco tem de inédito naquela parte do Magrebe. Desde 1980 que a subida do integrismo islâmico começou a pôr os nervos em franja ao poder político argelino. Manifestações estudantis, prisões e mortes foram marcando uma escalada de violência que desembocaram nos graves tumultos de 5 de Outubro de 1988 em Bab el-Oued, bairro popular de Argel. Duas semanas mais tarde hão-de contar-se por centenas os mortos.


A espiral começa, em definitivo, nesses dias. Os islamistas do FIS (Frente Islâmica de Salvação) conquistam a confiança dos bairros populares e irão ganhar, com mais de 50 % dos votos, as eleições locais e regionais de Junho de 1990 e, com 47, 5 %, a primeira volta das legislativas em Dezembro de 1991. O resto da história é bem conhecido: anulação das legislativas, prisão dos lideres integristas, estado de sítio, mais prisões e massacres, perseguições a jornalistas e a quadros superiores, assassinato de estrangeiros, a guerra civil instalada quase até hoje. No meio não faltarão vozes a acusar os militares de estarem por detrás de muitas das acções atribuídas ao FIS, bem como de serem os responsáveis pela corrupção e, em última análise, pelo empobrecimento da população.


Nada disso é visível à chegada, apesar do espalhafato das metralhadoras, nem no percurso que a viatura da embaixada faz pelas ruas de Argel, por entre subidas e descidas rodeadas de vegetação frondosa e onde, de vez em quando, se consegue ter uma vista do centro da cidade, com a casbah ao fundo, o Mediterrâneo à direita e um céu baço por cima. As areias do Saara chegam até aqui e dão ao ar um tom acastanhado. A primeira miragem de Argel é o céu azul, que não dará sinais durante toda uma semana.


Imaginamos sempre os sítios que não conhecemos, como se pudéssemos conceber e urbanizar cidades distantes. Construímos ruas que nunca existirão, praças que não foram construídas, ambientes que são estranhos à realidade, ficcionamos cores e pessoas. Foi um pouco diferente com Argel. Sabia das ruas largas e das longas arcadas de ar acolhedor, que vira em tempos no célebre “Z, a orgia do poder”, supostamente passado algures mas rodado na margem sul do Mediterrâneo. Sem que o tivesse dito a ninguém, era por causa daquele filme e das ruas que mostrava que agora ali estava.


Durante muitos anos, tive de Argel essa imagem dos tempos coloniais, numa cidade pouco magrebina e africana ainda menos. Entre o centro de Argel e o extremo norte da cidade, no bairro de Bab el-Oued, repetem-se os prédios do princípio do século. Colunatas, janelas de desenho elaborado e frontões de recorte neo-clássico dão aos edifícios um ar próspero e por momentos julgamos estar numa cosmopolita cidade europeia.

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Primeira de três partes de uma reportagem publicada no Diário do Alentejo no Verão de 2000. A viagem tivera lugar durante a Primavera desse ano. A fotografia (tirada por volta de 1880) mostra o porto, com os edifícios, já da era colonial, ao longo do Mediterrâneo e a cidade antiga por detrás.

3 comentários:

Paulo Nobre disse...

Parece o início de um belo romance. E as partes restantes?

Santiago Macias disse...

Um romance? Para quem quis fazer uma reportagem, não sei se isso é bom se é mau...

Fora de brincadeiras. A programação do blogue é feita com antecedência, até porque o trabalho autárquico não me dá muita margem para improvisos. Assim sendo, e abrindo jogo, aqui vão os dias e os títulos para os próximos capítulos de Argel:

ARGEL III - Elsie Heberstein (12.11)
ARGEL IV - Os dias e as miragens: 2ª parte (15.11)
ARGEL V - Da qasbah à aljama (19.11)
ARGEL VI - O Museu Islâmico (23.11)
ARGEL VII - Os dias e as miragens: 3ª parte (26.11)
ARGEL VIII - La taverne du lac (29.11)
ARGEL IX - L'italiana in Algeri (2.12)
ARGEL X - L´étranger (6.12)

Paulo Nobre disse...

As reportagens não poderiam ser, por vezes, belíssimos romances? E o contrário não é certo? Por mais esta é uma reportagem bem dividida em capítulos (ou fascículos, no caso).
O comentário não é depreciativo. Pelo contrário. Tanto que desejo ler o resto. Já percebi que tenho de estar atento aos capítulos.

Além do mais na altura esta terá, porventura, sido das poucas - para não dizer única - reportagens publicadas na imprensa portuguesa sobre a guerra civil na Argélia.
Muito da história contemporânea passa pelas linhas da imprensa. Onde a imprensa não chega (infelizmente ela não chega a muito lado por variadíssimas razões), não há história. Da Argélia, durante muitos anos, soubemos muito pouco.

E por que não um romance escrito entre as horas vagas da vereação?
Abraço