A revista do Diário de Notícias do passado domingo trazia uma reportagem que podemos, no mínimo, classificar de invulgar. Um ex-fotógrafo reconverteu o seu negócio e passou a adquirir colecções de imagens particulares. Viúvos sem família, pessoas sem descendência, emigrantes sem memória de onde param os seus, todos eles deixam um dia aqueles álbuns cheios de fotografias a quem ninguém sabe o que fazer. E, depois, ninguém sabe quem são aquelas pessoas sobre papel nem que vida tiveram.
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Nos sótãos das nossas casas há malas cheias de fotografias assim. De parentes cujos nomes se recordam com dificuldade. De colegas de escola que não voltámos a ver e que talvez, certamente, já não reconheceríamos volvidos 30 ou 40 anos. Sempre gostei de fazer essa arqueologia sentimental e de me rever, e à família e aos amigos, tantos anos passados. O fotógrafo nova-iorquino viu nesse mundo privado e secreto uma oportunidade de negócio. E pressentiu também nessa sua nova actividade um enorme peso. O de transportar consigo a memória de gerações. Arquivista malgré lui, estão à sua guarda milhares de anos de histórias pessoais.
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Quando, no Verão passado, a Kodak deixou de produzir os slides kodachrome ficou-me uma dúvida. Entretanto tornada em certeza. De que serão feitas as memórias das gerações futuras? No dia em que deixar de haver rolos fotográficos - e estamos já muito perto disso, eu que o diga com a cada vez mais difícil compra dos TX 400 - e em que as pessoas deixarem de encomendar ampliações, como irão arrumar a sua vida passada? As imagens digitais empilham-se em DVD, CD, em pen's e, com frequência, nunca daí passam ou são impressas em suportes de durabilidade reduzida.
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É certo que as nossas histórias fenecerão um dia e os registos feitos em dia de festa poderão ir para às mãos de um negociante nova-iorquino. Mas também é verdade que há sempre um punhado de imagens de que gostamos e que veneramos por qualquer motivo. E que conservamos, às vezes contra toda a lógica. Uma amiga minha manteve numa estante, meses a fio, a foto de um antigo namorado, ante o ar perplexo e intrigado da nova conquista. Ainda hoje me rio disso e me pergunto o que terá levado o moço a ficar calado perante a afronta...
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A passagem do tempo tem esses e outros mistérios. Há anos atrás ouvi, durante longos minutos, um angustiado Mariano Piçarra, que estava preocupado com os seus bem amados rolos a preto e branco. Os métodos de fabrico e de revelação só garantiam a integridade dos rolos por uns meros 120 anos. E depois?, preocupava-se o Mariano, seguramente na expectativa de ainda por aqui andar no século XXII. Não tinha, nem tenho resposta. O próprio Mariano me elucidou há uns meses, quando me anunciou que se tinha convertido ao digital. Está tudo dito, e a vida e a memória, dos outros e a nossa, não terão um dia qualquer registo ou qualquer memória. Bem vistas as coisas, que diferença isso faz?
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.Crónica publicada em A Planície, em 1 de Outubro de 2009.
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