sábado, 11 de julho de 2020

NÃO MATAR A MEMÓRIA

O alvoroço tem sido constante. E tem vindo num crescendo ruidoso, que se torna difícil de suportar. Exige-se a remoção de estátuas e de outros monumentos em memória de figuras históricas. Chefes militares, políticos, clérigos, todos têm sido alvo da fúria purificadora. Nem o Padre António Vieira escapou...
Se tomarmos como padrão a ética do século XXI, pouco escapará. Camões tinha um escravo, Afonso de Albuquerque foi um facínora, D. João II de perfeito só tinha o cognome e podemos multiplicar os nomes e as figuras. Nenhum corresponde ao padrão de neutralidade em que alguns querem tornar os nossos dias. É tão simples quanto isto: o contexto cultural, económico, social, religioso e político de 1383 ou de 1755 nada têm a ver um com o outro e, muito menos, com os valores dos nossos dias. A esta luz, quase tudo o que outrora se fez ou é ofensivo ou agressivo ou viola os direitos de minorias. Dizia-me, há dias, um historiador de arte, a propósito de um muito assertivo, e absurdamente incensado, grupo de pressão “vais ver que ainda vão armar estrilho à volta dos Painéis de S. Vicente, por haver poucas mulheres representadas...”. Não me espantará se qualquer coisa do género emergir.
Que fazer, então? A solução mais fácil é a do arrasamento. Como fizeram os taliban com os budas de Bamyan. Elimina-se aquilo de que discordamos. O que implica, também, eliminar a memória do que se passou. Ou reescrever ou tentar recriar essa mesma memória, o que é igualmente perigoso.
Foi esse tremendo equívoco que esteve na base do falhanço do abortado Museu da Descoberta (nunca percebi a razão do singular, para ser sincero). Assinalar datas, personagens e factos não implica, necessária e obrigatoriamente, o retomar do discurso nacionalista e da vulgata heróica. Ao contrário, a presença física desses heróis do passado – o Padrão dos Descobrimentos e Afonso de Albuquerque, em Belém; Vasco da Gama, em Angra do Heroísmo, António Raposo Tavares, em Beja – ajudam-nos a explicar factos e a contextualizar atitudes. A maior parte delas condenáveis, à luz da nossa moral.
Por mais que não gostemos de muitas coisas que se passaram, elas aconteceram, são factos que fazem parte do nosso passado e que não podem ser apagados. Mandar fora estátuas, padrões, inscrições, quadros, porque “ofendem” ou são “opressivos” é abrir uma caixa da pandora que será depois quase impossível fechar. Continuo a defender que é preferível a contextualização à destruição, a pedagogia à negação. Porque a outra tentação, a do apagamento, é claramente perigosa. Pode até ser mais simpática e consensual num primeiro momento. Virá depois o vazio e o pôr em risco a memória. Que é, manifestamente, algo de que não podemos prescindir. Nem individual, nem coletivamente.

Texto publicado ontem, no "Diário de Alentejo"

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