Durante vários anos Francisco Godinho tomou para mim a forma de um quase-Deus. Primeiro, íamos ao médico, a praia era coisa séria, com direito a consulta. Depois éramos mandados ao dispensário, expliquemos aos mais novos que é aquele edíficio onde esteve o posto de turismo e agora é a universidade sénior. O enfermeiro, o sr. Godinho, haveria de entrar daí a pouco, fazendo-se anunciar com umas botas de couro que chiavam imenso. Mandava-me entrar e punha-me um adesivo nas costas, que tirava dois ou três dias depoism enquanto sentenciava para o João “não há problema, podes levar o rapaz à praia”. O misterioso significado do adesivo mantém-se como um dos segredos nunca desvendados da infância. Era, contudo, aquele pedacinho de coisa nenhuma que me colavam entre as omoplatas que decidia se sim ou não poderia dar uso ao balde cor de laranja com peixinhos, objecto indispensável à construção dos mais belos castelos de areia da costa algarvia.
Por isso, atrevia-me a um cumprimento respeitoso ao sr. Godinho, quando ele passava no volkswagen branco onde, imaginava eu, iam malas cheias de adesivos dos quais dependia a felicidade de outros proprietários de baldes cor de laranja com peixinhos.
Monte Gordo estava para lá dos montes, à minha espera. Com as enormes bolas da Nívea, com o Café Trindade no largo e com um senhor de chapéu mexicano que apregoava as bolas de Berlim em tom mariachi, com uns guinchos que faziam rir a praia toda. A praia parecia enorme, com um areal que nunca mais acabava, os barcos dos pescadores lá muito longe e uma plataforma para mergulhos a vários quilómetros da costa. A escala métrica aos cinco anos é diferente da dos adultos e muitos anos depois ficamos desapontados quando vemos o mundo encolher, levando atrás de si o gigantismo dos tempos idos, quando os dias eram maiores e a felicidade se resumia a um sorvete duas vezes por semana e a um passeio de carroça a Vila Real de Santo António (“vamos levar o triplo do tempo”, desesperava-se o João, como se o triplo do tempo pudesse ter tradução em cincoanês).
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Mas o melhor de Monte Gordo talvez estivesse muito para lá do areal, nas Hortas, onde o chefe da estação, outro quase-Deus, de calças vincadas, boné branco e ar aprumado, mandava nos combóios. Quase rezava para que chegasse alguma tia ou prima ou quem quer que fosse só para ir à estação ver o homem da farda mandar no mundo. O combóio só saía quando ele muito bem entendia, por artes mágicas de uma bandeira vermelha e de um apito. "Quando for grande, vou ser chefe de estação", arrisquei, vencendo a vergonha. Senti-me transparente, quando o ouvi dizer "vais ter que estudar muito", desaparecendo de ar sério no gabinete escuro onde guardava a mágica bandeira vermelha.
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A estação de Monte Gordo já não existe, condenada pelos carros que hoje entopem a rua da aldeia outrora tranquila. A carreira de chefe de estação seria esquecida. Muitas das ilusões desses dias parecem ter-se esfumado para todo o sempre. Até ao outro dia, quando a praia me parecia ridiculamente pequena e os sete anos da Luísa me perguntaram "esta praia tem milhares de quilómetros, não tem?". Claro que tem, é tudo uma questão da métrica da idade e da ilusão de um momento que parece não ter fim.
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Crónica publicada em A Planície de 1 de Setembro de 2004. Quem serão as senhoras do colchão, com aquelas toucas que parecem ter inspirado os figurinistas do filme Marte ataca?
2 comentários:
Giro!!! Bjs desde Silves.
era tudo isso e melhor porque estávamos em 1959 -1968.
só lá voltei em 1981 e continuei a gostar de MG e resolvi continuar até 2001.preparava-me a voltar este ano mas arrependi-me pelo trabalho e pelos mosquitos.se calhar vou-me arrepender.quanto ao santoamadorenho parabéns mas a responsabilidade é muita principalmente pela personalide de quem ele vai "substituir" figuras destas não são insubstituíveis mas quase.dava um óptimo candidato a PR.creio que pertence à direcção condição sqn.continuação de boas férias sem mosquitos que eu vou começar as minhas.caetano
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