De onde quer que estejamos, a igreja é o centro da aldeia e, portanto, o centro do mundo. Chega-se à igreja vencendo o desnível, socalco após socalco, até se poder olhar o território em volta. Há casas num primeiro plano, depois terras, a Adiça ao longe, desaparecendo nos dias de bruma. Não diz muito uma aldeia vista de cima, com as ruas desertas e as casas fechadas. Vem, não sabemos donde, um silêncio que se sobrepõe a todos os sons. O tempo deixa de existir e é como se toda a vida se detivesse à volta dos muros das casas, imobilizando-se os ramos das árvores e deixando-se os pássaros suspensos no seu voo.
À volta de Santo Aleixo repousam restos das santo-aleixos doutros tempos. Os nomes são só nomes nos livros de História – Anta da Negrita, Castelo do Murtigão, Bezerra de Ouro –, abandonados nos campos e esquecidos por quase todos. A prosperidade antiga deste território, nos tempos em que os seus campos davam prata, repousa em livros que poucos lêem. Durante séculos, os homens alimentaram-se do ventre da terra. Em segredo, no mais completo silêncio, as minas de prata alimentaram uma prosperidade frugal. Palmo a palmo, metro a metro, a superfície e as entranhas da terra foram revolvidas. Podemos imaginá-los, aos santo-aleixenses de há mil anos, envenenando-se com os vapores do chumbo, enquanto derretiam o minério. Podemos vê-los, por entre o mato, em sítios escondidos à volta de Santo Aleixo, arrancando metais à terra, transformando-os e vendendo-os nos mercados das grandes cidades do sul. Podemos ouvir o seus passos surdos, nas tardes quentes de Verão e nas noites frias de Inverno, escapando às tropas dos imperadores, dos califas e dos reis e ludibriando quadrilhas de ladrões até chegar em segurança à aldeia.
A prata partiu há mil anos, sem deixar rasto nem memória nem nada.
Foi aqui que nasceu, no século IX, e que a partir da aldeia desafiou os poderosos do seu tempo, o guerreiro Faraj b. Khayr al-Tutaliqi. Poetas e guerreiros, pastores e mineiros. São ecos que chegaram até nós como sons que se desvanecem e poucos em Santo Aleixo reconhecerão o parentesco com esses remotos antepassados.
Fora da aldeia, só os pastores e os rebanhos se movem num cenário que pouco deve ter mudado em mil anos. Os fumos do minério deram, contudo, lugar ao espesso negrume dos fornos de carvão, cujo fumo vemos, aqui e além, cortar a linha do horizonte. A dureza do dia-a-dia não mudou e ficará, talvez, como a marca perene num ambiente pouco amigável e que não dá tréguas a quem aqui vive.
Fora da aldeia, longe da aldeia e longe do mundo, fica o Convento da Tomina, sítio de uma fé casada com o isolamento. O convento foi erigido entre brenhas e penhascos – em sítio áspero e fragoso, diz um texto antigo -, longe de tudo e fora do mundo. Um delírio em pedra argamassada sob a forma de fé, mas não deixa de impressionar a tenacidade dos que levaram a cabo tal empresa e habitaram o convento durante séculos. A Tomina é hoje uma quase miragem. A Senhora da Tomina dá o nome à principal festa religiosa da aldeia.
Regressemos à aldeia, ao território dos santo-aleixenses. Regressemos ao centro do mundo. Muitas vezes esse mundo teve que se defender à custa do sangue de quem aqui nasceu. Numa ocasião, em 12 de Agosto de 1644, o ataque atingiu dimensões nunca vistas. A descrição que nos chegou refere-se a uma data e a uma ocasião. O que nela se conta ocorreu muitas vezes antes e muitas outras depois. São vozes vindas do passado que nos contam como se tentou tomar a aldeia encostando sessenta escadas às trincheiras e são os mesmos sussurros que nos dizem como depois os habitantes mataram pelas ruas e casas mais de quatrocentos dos inimigos.
Se pararmos na Rua Lopo Sancas e esperarmos que passe a máquina do tempo veremos começarem a tomar forma vultos e sombras. Olhemos as casas que ardem, os muros das casas que se derrubam para que de umas se pudesse passar a outras: “E como Lopo Mendes quisesse levantar bandeira branca, e pedir quartel, as mulheres que estavam dentro do reduto lho não quiseram consentir, e pegando na bandeira lha fizeram baixar”. Cinzas e lume, dor e morte. Evoquemos a fúria das mulheres de Santo Aleixo, as mesmas que arrancavam lajes da igreja e as atiravam para cima dos inimigos, deixando-os logo sepultados debaixo dos pedaços das campas.
Tudo acabou na igreja, com o tecto a cair no meio de uma explosão, gente morta e estropiada, outra lançando-se do que restava do telhado. Sentemo-nos no adro da igreja e olhemos o que resta desse cenário terrível: uma lápide onde se lêem os nomes dos homens principais de Santo Aleixo que foram mortos ou ficaram feridos ou cativos. Estranha justiça esta que homenageia só os homens, e dentre estes apenas os principais, aqueles que por riqueza herdada ou adquirida se distinguiam de todos os outros.
Na igreja de hoje, apenas a placa evoca esses momentos de horror. O silêncio do templo só é quebrado nos momentos de celebração ou nos dias de festa. Nesses dias Santo Aleixo ganha reverberações da Anadaluzia e guerras antigas tornam-se ainda mais difusas.
A procissão, esse desfile de celebração tão remoto como o Mediterrâneo, marca o compasso da festa. O tamborileiro, tão antigo como a procissão, marca o ritmo do desfile. O percurso é antigo e de todos conhecido. Todos os preceitos passam de geração em geração. Há flores, guiões e andores e imagens. Há anjinhos, música e padres. “A luxúria leva ao fogo”, proclama um clérigo, enquanto moças bonitas e vestidas a preceito vão passando devagar. A quem se dirigirão as palavras? Às moças, a nós ou a si próprio?
Nos dias de festa a quietude é quebrada e revive uma Santo Aleixo antiga e telúrica. Quando quase todos partem, voltam a quietude e o silêncio, quase só quebrado pelas vozes que, a espaços, ainda ecoam nas tabernas ou pelos insistentes ensaios dos grupos corais.
Um ritmo conhecido retoma-se nos dias seguintes às festas. Voltaremos mais tarde à aldeia. Partidos os visitantes, soam agora outros passos nas suas ruas. Guardas e carteiros são quem as percorre com regularidade e por dever de ofício. Há menos cartas a entregar e menos ocorrências a registar. Com o passar dos anos, as voltas e os percursos tornam-se mais rápidos.
Há dias que ficaram lá atrás no tempo e que não se podem retomar. Não podemos aí demorar-nos, não vá o destino tomar conta de nós. Depois de sairmos é a partida sem olhar para trás, porque a podemos perder como a Eurídice. E assim a aldeia mergulha a pouco e pouco no horizonte como uma cidade vista do mar, quando o barco se afasta e nessa altura já não se vê a cidade.
5 comentários:
Caríssimo amigo, gostava de lá ter estado, mas esta coisa dos passeios de barco e então no verão e principalmente ao fim de semana não me dão grande margem de manobra e quando temos temos que subir a pulso sem que nos levem ao colo ainda se torna mais difícil, mas também nos dá mais gozo.
Votos de bom trabalho.
H.N.
Bem, amigo Santiago, mais uma Festa da Tomina que passou. Foi com pouca vontade que voltei para a labuta do dia a dia. E, fiquei em divida com uma imperial...
Bem, pode ser que na Feira de Setembro possa pagar essa divida.
P.S.: Os contentores do lixo reciclado estavam iguais aos anos anteriores, a abarrotar. Aparentemente a Resialentejo não se preocupa em cumprir com as suas obrigações.
P.S. do P.S.: Bom livro, sim senhor. Parabéns!
gostei do que li e porque tive ancestrais de santo aleixo (os meus bisavós paternos)e não só, gostaria de ter acesso a esta obra. como? faça o favor de me informar onde a posso adquirir.
aqui da festa
saudações c
francisco caetano
Desculpe a demora. O livro estará à venda na Junta de Freguesia de Santo Aleixo e na Câmara de Moura.
Abraço
SM
já o mandei vir. quem me atendeu na jf de sa foi de uma simpatia extrema.ele que me desculpe por não por aqui o nome. disse-me que me ia enviar uma 2ª edição! bolas! eu que esperava uma 1ªedição assinada pelo autor!será que não se arranja um exemplar na vila? ou melhor na cidade?
saudações c
francisco caetano
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