Agradeço, muito
sinceramente o convite para estar presente nesta sessão. Homenagear os que
antecederam as nossas gerações é um ato de justiça, um gesto de reconhecimento
e uma atitude que dignifica quem tanto se esforçou e que dignifica também quem
promove a homenagem. Cabe aqui uma palavra muito especial ao Dr. Luís Raposo
por todo o empenho posto não só nesta iniciativa como em tantas outras que
prestigiaram o Museu Nacional de Arqueologia, dando-lhe um lugar de destaque no
contexto dos museus nacionais. Igual palavra de reconhecimento é devida ao Dr.
António Carvalho, atual diretor do Museu, que tem tido a sabedoria de continuar
e mesmo aprofundar a obra do seu antecessor.
Saúdo o Prof. Carlos Fabião, com quem
partilho esta sessão, arqueólogo de renome e uma das não muitas pessoas que tem
refletido e escrito sobre a evolução da arqueologia em Portugal, trazendo a
terrenos importantes contributos teóricos. Será dele, certamente, a reflexão
mais importante sobre Leite de Vasconcelos, no contexto da presente evocação.
Não sou um especialista na obra de
Leite de Vasconcelos, nem sequer um dos seus estudiosos. Poderão então
perguntar qual o sentido da minha participação. Como todos nós, considero-me
devedor profundo da obra de Leite de Vasconcelos, que me tem acompanhado ao
longo de toda a minha vida profissional. Mas, na realidade, aceitei o convite
que o Dr. Luís Raposo me fez pelo facto de Leite de Vasconcelos ter exercido a
sua atividade num contacto permanente com o terreno, em sucessivas e exaustivas
recolhas. O que o fez correr o País de lés-a-lés, contribuindo para um
despertar de consciências e para uma recolha de materiais, de informações e de
conhecimentos que se viriam a revelar de crucial importância científica e de
insubstituível valor para a construção da imagem e para a descoberta de um
Portugal que ele ajudou a construir. Mas foi o facto de ser hoje investigador
da Universidade de Coimbra e presidente da Câmara Municipal de Moura, no
Alentejo, que me levou a participar na homenagem a Leite de Vasconcelos. Por um
lado, porque ele esteve diretamente ligado a vários estudos realizados no meu
concelho. Depois, porque foi o inspirador direto de uma dissertação de
licenciatura – Monografia Arqueológica do
Concelho de Moura – do seu discípulo José Fragoso de Lima, que constitui,
passadas mais de sete décadas, importante base de trabalho, em termos
informativos. Finalmente, porque a presença da História, da Arqueologia, do
Património e da Cultura são decisivas para o desenvolvimento dos municípios
portugueses. A participação dos investigadores na vida política é tão
necessária como a de qualquer outro setor da sociedade.
Recorro ao prólogo de “Religiões da
Lusitânia”, obra intemporal e inspiradora. Cito: “em 1892 devia realizar-se em Lisboa a 10ª sessão do
Congresso Internacional dos Orientalistas, ao qual eu tencionava offerecer uma
memoria sobre as Religiões da Lusitania
(…). Afinal o Congresso não se realizou (…)”. O Fundo Monetário Internacional
surgiu em 1944, o Banco Central Europeu apenas em 1998. Não podem ser
responsabilizados. Mas razões financeiras poderão ter estado na raíz do
adiamento, uma vez que em 1892 Portugal teve uma das suas cíclicas bancarrotas.
O congresso viria a ter lugar em Geneva, em 1894. Nota à margem: estava
inscrito no encontro suiço um português, José Maria Rodrigues, da Universidade
de Coimbra, que acabou por faltar.
Esse contratempo não impediu Leite de
Vasconcelos de fundar, em 1893, o Museu
Ethnographico Portuguez, e de dar início à edificação de um publicação,
hoje imprescindível: a revista O
archeólogo portuguez, cujo primeiro número é dado à estampa em 1895. Mas é
a peregrinação de Leite de Vasconcelos pelo país real, circulando de terra em
terra, que se revelará decisiva para a construção do conhecimento e para a
estruturação de obras como Etnografia
Portuguesa e Religiões da Lusitânia.
Esta última é publicada, em três volumes, entre 1897 e 1913. A escrita obedeceu
a um critério cronológico, que começa na Pré-História e termina, na prática, no
período romano. Apenas as últimas 45 páginas são reservadas às chamadas
religiões da época dos bárbaros.
Um dos méritos maiores de Leite de
Vasconcelos, do qual todos somos grandes devedores e grandes tributários, foi a
sua capacidade de associar os conhecimentos académicos a uma leitura
etnográfica dos territórios no seu devir permanente. Os grandes factos da
História são seguramente importantes. Mas não mais do que os pequenos objetos
do quotidiano, associados às crenças, aos gestos e à cultura de um Povo. A
compreensão do método de construção de um templo romano, nas suas proporções
vitruvianas, é-nos essencial. Mas não mais do que a leitura da arquitetura
tradicional e do que entendimento da ligação do Homem à terra. Foi isso que
Leite de Vasconcelos nos explicou, com detalhe, ao longo de milhares de
páginas. Foi essa aproximação à realidade que, mais tarde, nos ajudou nos
nossos percursos de investigação e na leitura das nossas escavações
arqueológicas.
Quando
o 25 de abril de 1974 chega, o panorama cultural do interior do País era um
deserto penoso. O conhecimento histórico-arqueológico de vastas áreas do
território carateriza-se, com algumas honrosas exceções, pela inépcia, pelo
acientifismo e pelo amadorismo. Os museus municipais não passavam de armazéns
onde, com frequência, se misturavam, sem critério nem leitura, peças da maior
qualidade com os óculos já sem préstimo do seu responsável. Isto não é uma
figura de estilo, estou a relatar um facto que presenciei há muitos anos, não
importa onde.
É o decisivo papel das autarquias,
acompanhado por uma imprescindível renovação na Universidade, que vem dar um
extraordinário impulso ao avanço da investigação. Recordo que as bolsas de
estudo eram, nessa altura, raras e que os apoios à investigação parcos e
insuficientes. Constato, com mágoa, que 40 anos depois, regressámos à casa da
partida e não falta gente nos centros de decisão que olhe os arqueólogos e os
historiadores como sibaritas e dissapadores dos magros recursos da Fazenda
Pública.
Nos anos que se seguiram a 1974
muitas autarquias apoiaram projetos de investigação saídos das universidades, a
que breve trecho se juntaram os de uma nova geração que então começou a
espalhar-se pelo território nacional. Projetos como os que têm, ainda hoje,
lugar em Mértola e em Silves, assumiram um decisivo papel de estudo e de
divulgação de um obscuro e exótico período islâmico. Os primeiros, e ainda que
tímidos, esforços de valorização dessa época, estão presentes nas páginas de O archeologo portuguez, com as leituras
e traduções de várias peças de epigrafia e com a divulgação de achados
numismáticos. Quase todos esses programas de trabalho se aliaram, depois do 25
abril, a planos de divulgação locais e à valorização do património e da
identidade de cada sítio. Tributário de Leite de Vasconcelos é, em toda a sua
dimensão, esse esforço de compreensão. Permito-me destacar, e não por estar
presente um dos seus autores, o projeto de Mesas do Castelinho, desenvolvido ao
longo de duas décadas e meia num inóspito cerro do interior alenetejano. A
ligação à comunidade e a integração e apropriação dos resultados de um estudo
académico por parte da comunidade local não seriam possíveis sem essa
proximidade que tantas vezes acompanhamos nas páginas de Leite de Vasconcelos.
Muitas vezes, o seu trabalho não era
de escavação, em termos formais. Mas a sua observação do território e a
permanente recolha de peças fizeram que o labor desenvolvido tivesse
contribuído para ajudar a construir a coleção do Museu Nacional de Arqueologia.
O seu método implicava proximidade: “não só me informei de tudo ou quasi tudo o
que em Portugal se tem escrito sobre estes assumptos, (…) mas percorri grande
parte do país, a fim de conhecer melhor os monumentos de que tenho de tratar”.
Do ponto de vista científico, os objetivos a que se propunha podem ser
questionáveis, designadamente pelo seu marcado positivismo – mas nisso, como em
tantas outaras coisas, quem nunca pecou que atire a primeira pedra – e depois
pela procura, e aqui estou a citar o texto de Carlos Fabião, das “tradições
populares como depósito de remotas reminiscências das religiosidades pagãs”.
O trabalho realizado em Mértola nos
últimos 35 anos é-lhe devedor. Leite de Vasconcelos aí se deslocou-se várias
vezes, disso nos deixando interessantes relatos nas páginas do Arqueólogo Português. Quando, em finais
do século XIX, Leite de Vasconcelos chegou a Mértola há muito que o brilho
daquela que fôra uma importante cidade dos circuitos mediterrânicos se
esbatera: “Mértola está hoje muito decaída do esplendor d’ outr’ora, e só pela
sua posição topografica, entre a Betica e a Lusitania, na margem do Anas, e a
pouca distancia da foz, se explica esse esplendor, porquanto é terra arida,
coberta de lousas tristes, e nua de arvoredo. Todavia passaram ali todas ou
quasi todas as civilizações da nossa terra. (…) Alem das investigações que
Estacio da Veiga empreendeu, e das poucas coisas que fiz agora, é necessario
ainda prosseguir com muito afan no estudo da antiga Mertola, para esta se poder
conhecer mais miudamente: há ainda muita cousa enterrada, que é conveniente
trazer á luz”. De facto, assim seria. Leite de Vasconcelos ali identificou
cerca de duas dezenas de cistas, recolheu uma larnax, bem como moedas e cerâmicas romanas. Procedeu
ainda a uma brevíssima intervenção no Rossio do Carmo do qual nos deixou apenas
algumas notas e um croquis. Foi provavelmente nos trabalhos realizados por Leite de Vasconcelos (ou
até nos de Estácio da Veiga) que se recolheram as “três vasilhas visigóticas” e
as “quatro lucernas paleocristãs” ou ainda a pulseira em cobre com duas cabeças
do Museu Nacional de Arqueologia. As 11 sepulturas escavadas
pertencem, pela sua tipologia construtiva e pela orientação que apresentavam,
ao cemitério da Alta Idade Média que ocupou os terrenos do Rossio do Carmo.
Dá-nos um interessante testemunho sobre as ruas da vila: “por toda a vila (…)
se encontram a cada passo nos muros, nas ruas, nos edifícios, ora columnas
lisas ou com lavores, ora várias pedras de caracter archaico, que revelam a
antiga grandeza, e a successiva decadencia”. Foi preciso esperar oito décadas para
que os trabalhos arqueológicos naquela vila fossem retomados.
Em 1939,
já com mais de 80 anos, ainda acompanhava jovens estudantes pelos campos do
Alentejo, publicando textos em desconhecidos periódicos como o “Jornal de Moura”.
É, também essa dimensão local e o papel que, indiretamente, teve na arqueologia
da minha terra que me faz hoje estar aqui dando modesto testemunho sobre este
homem da Cultura.
Há coisas
que hoje me continuam a assombrar na obra de Leite de Vasconcelos? Deerto que
sim. É notável a sua capacidade trabalho, traduzida numa invulgar organização,
que lhe permitia reunir, compilar e interpretar dados. Obras como “Religiões da
Lusitânia” são resultado de muitas horas de trabalho de investigação, depois
traduzidas nesta síntese. Naquela época não havia computadores pessoais,
processadores de texto, digitalizadores ou simples fotocópias. Mesmo as simples
máquinas de escrever eram uma raridade. Recordo estas carências tecnológicas
para sublinhar o esforço de organização que obras tão monumentais requeriam.
Se me
perguntassem qual o aspeto que mais me interessa em Leite de Vasconcelos
arqueólogo diria, sem hesitação, que é a ligação que faz entre a História, o
Homem, o seu meio e as suas crenças mais antigas. Ou seja, quase todo o segundo
volume de Religiões da Lusitânia, na secção que se refere às divindades, às
crenças e aos cultos. É uma abordagem quase panteísta, sublinhando o papel das
pedras sagradas, dos bosques, dos rios, das fontes e dos pontos estratégicos
nas margens do mar. Adquire particular relevo a importância dada às divindades
de cada região, sem as quais se torna incompreensível o fenómeno dos santos de
expressão local, que emergem na Alta Idade Média e que só um discurso
normalizador viria a quase eliminar. Digo quase porque muitas comunidades
rurais continuam a venerar santos não oficiais. Leite de Vasconcelos gostaria
de saber que coisas assim, vivas e coloridas, se mantêm no século XXI. As
páginas dedicadas ao culto de Endovélico, de Atégina ou de Trebaruna não só
denotam erudição profunda, como nos ajudam a entender que o registo de
materiais feito teve por fim a compreensão e explicação de um fenómeno
histórico e social. Esse trabalho facilitaria também a recolha de material
epigráfico, que hoje é uma das razões de orgulho do museu que fundou.
Sendo autodidata, e sempre mais
preocupado com a interpretação do que os aspetos formais da escavação, Leite de
Vasconcelos tinha particular preocupação com o registo dos materiais e de tudo
o que observava.
Médico, museólogo, linguista,
etnólogo, arqueólogo, Leite de Vasconcelos é, provavelmente, um dos últimos
homens do Renascimento do nosso País. O seu espólio conserva-se no Museu
Nacional de Arqueologia. O seu exemplo também.
Por tudo isto, pelo esforço, pela
tenacidade, pelo exemplo e pela proficiência de Leite de Vasconcelos,
necessitamos de reinvestir na Cultura. Com a noção muito clara que esse é,
claramente, um dos elementos diferenciadores do progresso e do desenvolvimento.
No meio de todas as dificuldades, é também nestas áreas que a nossa atenção se
deve focar. A arqueologia e a investigação, que tanto beneficiaram nas últimas
décadas, não podem ser abandonadas à sua sorte e à mercê de contabilidades
momentâneas. Em nome daquilo que tem vindo a ser feito nas últimas décadas e em
respeito pelo legado de homens como Leite de Vasconcelos.
Cortar em bibliotecas em tempo de
recessão é como cortar nos hospitais durante uma epidemia, escreveu uma
bibliotecária canadiana. Já vi muitos ministros em centros comerciais. Não me
recordo de me ter cruzado com algum numa biblioteca, numa livraria ou num
museu. O notável trabalho desenvolvido nos museus portugueses nas últimas décadas
permitiu-nos dar passos significativos em termos de conhecimento e de
divulgação. O subdesenvolvimento cultural é a causa do subdesenvolvimento
económico, não o contrário. Grande parte do trabalho desenvolvido no Museu
Nacional de Arqueologia nas últimas décadas – falemos deste porque é a este que
a memória de Leite de Vasconcelos se liga – não implicou gastos faraónicos.
Foi, sim, fruto de atos de gestão cuidados e da inteligente e prestigiante
direção que Luís Raposo lhe imprimiu. Contrariamente ao estilo português
manifestou em voz alta discordâncias com a tutela. Pagou por isso.
O exemplo de Leite de Vasconcelos
enquanto arqueólogo, o seu amor a este nosso querido País, levam-me a sublinhar
a convicção de que o caminho passa por uma responsabilização coletiva em torno
do Património e da nossa memória coletiva. Enquanto investigador da
Universidade de Coimbra e presidente da Câmara de Moura continuarei a lutar por
isso. Os trabalhos de reabilitação que, modestamente, temos vindo a
concretizar, serão continuados. A arqueologia terá neles a parte que lhe cabe.
Temos, nos municípios, a obrigação de respeitar o legado que nos foi deixado. E
de o melhorar e transmitir às próximas gerações. É uma ideia que está presente,
quase sempre de forma subliminar, nas páginas escritas por Leite de
Vasconcelos.
Há um paradoxo, notado por Carlos
Fabião, no seu texto: o facto de ter conhecido o País a partir de Lisboa, tendo
sido um “centralista que produziu uma obra incontornável para qualquer estudo
de índole local ou regional”. Desconfiava da capacidade e da competência dos
agentes locais. Por isso, diz Fabião, Leite de Vasconcelos não é hoje popular.
Permito-me discordar, acentuando o paradoxo. Foi justamente o seu centralismo
que salvou, decerto, muita informação e sem ele muita coisa teria desaparecido.
Mas isso não é, agora, justificação para um regresso ao passado.
Ao contrário do que recomendam as
regras, e escritores como Ernest Hemingway insistiam neste tópico, usei
abundamente os adjetivos ao longo do texto. Não foi um lapso, foi um gesto
deliberado. Foi uma forma de valorizar o que Leite de Vasconcelos nos legou e
de sublinhar a importância do seu labor. Em 2016 assinalam-se os 75 anos do seu
desaparecimento. Esta iniciativa prova que Leite de Vasconcelos permanece vivo
e bem presente para todos nós. Celebrando-o, celebramos também o seu amor ao
Povo Português. Dignificando a sua memória dignificamos também a memória de
todos os que, desde 1974, ajudaram a reconstruir um País e a devolvê-lo ao seu
Povo. Povo que canta, nunca se rende,
diz uma canção corsa que Michel Giacometti imortalizou entre nós. É importante
recordar tudo isto, neste ano em que celebram os 40 anos do dia da libertação.
Santiago Macias
Investigador do Programa Ciência 2008
da FCT (Universidade de Coimbra – CEAUCP/CAM)
Presidente da Câmara Municipal de
Moura
OK, pensava que "pronto, já está, nem mais um textinho". Enganei-me. Depois da minha participação, na Assembleia da República, no ciclo de painéis homenageando José Leite de Vasconcelos, tentei "esquecer" a conferência. Nada feito. Um persistente Luís Raposo chamou-me à pedra e obrigou-me a entregar o texto. Sai em breve e aqui fica em ante-estreia. Estou bem acompanhado: Pedro Roseta, Gulherme d'Oliveira Martins, Luís Fagundes Duarte, António Valdemar, Luís Raposo, Carlos Fabião, Simonetta Luz Afonso... Resta saber se eles também acham que eu sou boa companhia...
1 comentário:
Santiago: com ou sem Vasconcellos, és sempre uma excelente companhia :) Abraço
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