sábado, 28 de março de 2015

TARDE NO SADO

O poema reporta-se à manhã, mas era já meio da tarde. O porto palafítico da Carrasqueira é uma lição de História, de Antropologia, de Arquitetura Popular, tudo ao mesmo tempo. Deitei contas à vida e concluí que estivera na Carrasqueira em 1997 ou 1998. A meio da tarde havia gente a trabalhar, alguns visitantes e havia calor. Passou por nós o som da poesia de Sebastião da Gama. Que foi a melhor forma de combater a palavrosa aridez do dia.

 
 

Manhã no Sado
Brancas, as velas
eram sonhos que o rio sonhava alto....

Meninas debruçadas em janelas,
viam-se, à flor azul das águas, as gaivotas.
E a Manhã quieta (sorrindo, linda, vinha vindo a Primavera…)
punha os pés melindrosos entre as conchas.
Derivavam jardins imponderáveis
dos seus passos de ninfa
e tremiam as conchas
de súbitas carícias.

Longe era tudo: o medo dos naufrágios,
as angústias dos homens, o desgosto,
os esgares das tragédias e comédias
de cada um, os lutos, as derrotas.
Longe a paz verdadeira das crianças
e a teimosia heróica dos que esperam.

Ali, à beira-rio,
de olhos só para o rio, de ouvidos surdos
ao que não é a música das águas,
um sossego alegórico persiste.
Nem o arfar das velas o perturba.
Nem o rumor dos seios capitosos
da Manhã, que nas águas desabrocham
e flutuam, doentes de perfume.
Nem a presença humana do Poeta
- sombra que a pouco e pouco se ilumina
e se dilui, anónima, na aragem…

Sebastião da Gama

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