quarta-feira, 7 de outubro de 2009

PROFESSORA JACINTA

Ter andado numa escola é ficar com essa escola colada à nossa pele para todo o sempre. Ter sido aluno de uma professora durante quatro anos é andar pela mão dessa professora para todo o sempre.
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Durante uma parte importante das nossas vidas fomos alunos da Professora Jacinta. As regras eram claras e simples:
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Durante quatro anos usaríamos uma bata azul, que teria letras bordadas do lado esquerdo, cuja cor mudaria consoante o ano que frequentávamos;
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Durante quatro anos faríamos cópias e ditados, contas e leituras, redacções e tabuadas; uma palavra errada num ditado era um erro, um acento fora do sítio valia um quarto de erro. Era coisa rara que um aluno tivesse mais que dois erros num extenso ditado. Um quase milagre de origem divina nos dias de hoje, uma fonte de arrelias para a Professora Jacinta cujo objectivo era poder dizer “nenhum erro no ditado”;
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Durante quatro anos seríamos obrigados a aprender, a fazer trabalhos de casa e a, em cada dia e sem descanso nem retrocesso, a melhorar;
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Durante quatro anos ensinou-nos o sentido profundo das palavras de Séneca que, há quase dois mil anos dizia “a ignorância é a causa do medo”. E assim a senhora nos foi combatendo a ignorância e o medo. E despertou em nós a vontade de sabermos mais. E de sabermos mais e melhor.
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O ambiente que a Professora Jacinta impunha nada tinha de medo, temor ou receio, muito pelo contrário. Aquilo que, enquanto alunos sentíamos era simples: teríamos de ser cada vez mais perfeitos, teríamos de nos superar um dia após outro e outro. Treinávamos as provas e os exames uma vez e outra, como os maestros ensaiam afincadamente as suas orquestras. Por isso não esquecemos o ar de orgulho com que a Professora Jacinta constatava que as suas raparigas e os seus rapazes se tinham saído muito bem naquele dia e, por norma, ficavam bem à frente de outras escolas.
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Quando hoje olhamos para trás, e esse para trás começa a ter mais anos do que gostaríamos, ficamos contentes porque a Professora Jacinta nos punha a ler poesia e a dramatizar textos. No nosso ano lemos um livro inesquecível, A menina gotinha de água, de Papiniano Carlos. Noutros anos estou certo que se leram outros textos inesquecíveis. Foi aí que começámos a amar as palavras e a poesia.
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Foi nesses anos que nos foram incutidas regras simples e precisas: a importância da pontualidade, a obrigatoriedade de cumprir os deveres, a necessidade de fazermos o nosso trabalho bem feito. E muitas outras normas de ética que a Professora Jacinta queria que nos ficassem para todo o sempre. E que creio que ficaram.
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Um belo dia chegou o exame da quarta classe. A vida ia mudar para todos nós. No nosso caso – o da turma 1969/1973 – isso aconteceu no dia 5 de Julho de 1973. O exame da quarta classe era coisa séria. Tínhamos sido devidamente instruídos. Desde o dobrar do papel da prova até à forma de responder aos examinadores tudo era preparado ao mais ínfimo pormenor. Nunca mais tal esquecemos, porque esse exemplo o repetimos vezes sem conta ao longo da vida.
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Na escola da Professora Jacinta não havia computadores Magalhães e não se ensinava inglês. A Professora Jacinta limitava-se, coisa se calhar banal, a ensinar a ler e a escrever correctamente numa língua antiga chamada Português. E havia também outra coisa, essa muito menos banal, que era o amor pelo ensino e pelos seus alunos. Essa não tem preço e não há nada na Terra que a pague. Estamos, portanto, perante uma situação difícil, que talvez o seu filho Jorge possa enquadrar num capítulo da Ciência Económica. Temos uma dívida para consigo, sendo que dela nunca nos pediu contas, nós não sabemos qual o montante, nem sabemos como lhe pagar.
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Fiquemos, portanto, pela certeza que foi para todos nós, e para os muitos outros que hoje aqui não puderam estar fisicamente, uma época importante e decisiva das nossas vidas o termos sido seus alunos no Externato Júlio Dinis. Que esses dias e essa aprendizagem não ficaram lá atrás no passado e que nos acompanham e acompanharão em todos os dias da nossa vida. E que é para todos nós um motivo de imenso orgulho termos sido e continuarmos a ser alunos da Professora Jacinta.
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Texto lido no almoço de homenagem à Professora Jacinta da Conceição Acabado Oliveira Pinto (em 21.12.2008). Publicado em A Planície de 1 de Janeiro de 2009.
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Edifícios onde funcionou o Externato Júlio Dinis: Rua Dr. Garcia Peres, 45 (em cima) e Praça Sacadura Cabral, 13 (em baixo).
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Alunos dos anos 1969/1973:
António Manuel Pato Oca
Carlos José Albardeiro Barradas
Carlos Manuel Coelho Brito
Carlos Manuel Ramos Pinto
Fernando Brito Oliveira Pinto
Helder Barqueta Condeça Feliciano
Helder Silva Arsénio
Joaquim Elias Andrade Ventinhas
Joaquim Manuel Moita Araújo
José António Beiras Sinfrónio
José Carlos Oliveira Farinho
Luís José Fonseca Infante
Rui Manuel dos Santos Pires Marques
Santiago Augusto Ferreira Macias
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Vanda de Jesus Lopes Oliveira Gomes
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Faz hoje 40 anos que entrámos para a Escola Primária.

4 comentários:

Dulcineia disse...

Nao te teras esquecido da componente feminina da classe ?
Eu sei que nao faziam parte oficialmente da escola, por se tratar de uma escola so para o sexo masculino. Mas elas estavam la... Por vezes escondidas na copa (quando passava a Inspecçao).

Um grande beijinho para a D. Jacinta.

térpsicore disse...

Não sei quando foi o dia e o ano em que entrei para a Escola Primária, lembro-me bem de todos os colegas da minhas salas, mas nenhum(a professor(a) me marcou muito nesta fase. Tive 5 Professores em 4 anos: a Carolina Pato, que nos marcou pelo uso assíduo de uma "régua de madeira" com que castigava os mais inquietos ou os menos espertos; depois a professora Remédios, 2 anos. Gostava do tintol. Nós não percebíamos porque que é que a professora muitas vezes falhava o degrau do estrado de madeira abaixo do quadro, mas ela falhava-o e muito. E ás vezes magoava-se! E nós achávamos que ela era "só" maluquinha! Por último, 4ª classe, 2 professores. A primeira era de Beja e como estava grávida só ficou até meio do ano. Depois veio o Estevão, um rapaz de vinte e poucos aninhos, enorme, molengão e bimbo de Trás-Os-Montes! Foi a galhofa para terminar a Escola Primária.

Isto tudo para dizer que a Jacinta da minha vida foi outra. Melhor. Foi outro. Só o conheci aos 16 anos, quando entrei para a profissional, mas passei 3600 horas (e muitas mais que não foram contabilizadas no calendário escolar) com este Professor, que me ensinou mais do que a matéria da escola, preparou-me para a prática da vida. O Carlos Pedro foi a minha Jacinta, é ainda hoje uma referência, será-o sempre, porque o passado não se apaga.
E criámos tantos laços de família. Ele é ti'Carlos, ele é avô Cândido, ...

sim disse...

Quer na qualidade de filho, quer na qualidade de aluno, o meu muito obrigado por me fazeres recordar os tempos e o aniversário.

Um abraço

Anónimo disse...

Compartilho convosco as saudades desses tempos.
O tempo e a vida decidiu separar-nos a todos.
Um abraço.
Helder Feliciano