terça-feira, 4 de janeiro de 2011

TRÍPTICO

Nem sempre os pontos de contacto são evidentes. Neste caso é o título que une os dois trípticos: o de Francis Bacon (1909-1992), pintado em 1976, e o poema de Herberto Helder.
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No mais, tudo são diferenças, Bacon era uma pop-star da pintura, Herberto Helder um recluso. O quadro foi vendido a Roman Abramovich há dois anos e vale 87 milhões de dólares; Herberto Helder não se dá, sequer, ao trabalho de receber os prémios que lhe atribuem. Os trípticos e a ideia de sequência foram uma constante na obra de Bacon. As palavras pouco fáceis são-no na poesia de Herberto Helder.
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Curiosidade: é de Bacon o quadro de que Joker gosta no filme Batman...
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Não sei como dizer-te que minha voz te procura

e a atenção começa a florir, quando sucede a noite

esplêndida e vasta.

Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos

se enchem de um brilho precioso

e estremeces como um pensamento chegado. Quando,

iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima

— eu não sei como dizer-te que cem ideias,

dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros

ao lado do espaço

e o coração é uma semente inventada

em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a casa ardesse pousada na noite.

— E então não sei o que dizer

junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas

que às vezes se despenham no meio do tempo

— não sei como dizer-te que a pureza,

dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto

correr do espaço —

e penso que vou dizer algo cheio de razão,

mas quando a sombra cai da curva sôfrega

dos meus lábios, sinto que me faltam

um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer

coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres

que dentro de mim é o sol, o fruto,

a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,

o amor,

que te procuram.


excerto do poema «Tríptico», publicado em A Colher na Boca, datado de 1961

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pela selecção deste poema, um dos mais bonitos e bem conseguidos alguma vez escritos em língua portuguesa.Já o Bacon é só para alguns gostos.
Bom ano

Anónimo disse...

Excelente! O poema.
Este é daqueles que, (com mais ou menos significado) me vai trazer aqui ao blog várias vezes. Para ler e reler sempre que me apetecer.

babao disse...

O poema é lindo.
Mas o Bacon prefiro-o com ovos estrelados : ))