O CANTE, NO DIA DE HOJE
“Ia, no outro dia, descendo
a rua quando ouvi, 20 metros mais abaixo, alguém que cantava no rio uma
belíssima moda. Era uma daquelas vozes melancólicas e cheia de uns trinados
que, mesmo no cante alentejano, vão sendo cada vez mais raros.
A voz do pescador enchia o
anfiteatro natural que Mértola é, para meu encanto e para espanto de um grupo
de turistas alemães que assistia, fascinado, àquela magnífica exibição.
Ao escutá-lo não pude deixar
de me lembrar de Michel Giacometti, que me contou que tinha em tempos ouvido as
mesmas melodias, os mesmos cantos de trabalho, em Marrocos e em Portugal, prova
provada que o mundo de cá e o mundo de lá são criação recente das polícias e
das alfândegas. Não pude deixar de pensar naqueles que melhor representam as
músicas de tradição mediterrânica. Na Ti Chitas, pastora de Penha Garcia, na
"Senhora do Almortão", nos adufes de Idanha e em alguns grupos corais
do Alentejo. Recordei-me das vozes únicas de Pepe Marchena e de El Cabrero e
de, ainda que seja difícil convencer muitos portugueses que os fandangos de
Huelva estão entre as mais belas sonoridades do mundo. Vieram-me também à
memória os nomes de Manuel Bento, Perpétua Maria e Francisco António, artesãos
daquela estranha e magnífica arte do cante e do toque campaniço.
A arte do cante do
Mediterrâneo português definha. É com amargura que se ouve cantar cada vez
pior, por entre grupos de música etnopimba e por entre supostas, e mais que
discutíveis, modernizações. A voz daquele pastor de meia-idade representa o que
vai resistindo de uma cultura milenar. Há muitas centenas de anos que as
margens do Guadiana, e os esplendorosos cerros à sua volta, ouvem pescadores
cantar a mesma musicalidade, dita umas vezes em latim, outras em árabe, outras
enfim em português. A quem terá ele escutado aqueles sons? Terá ensinado algum
neto a cantar como ele? Ou, no dia em que ficar demasiado velho, ninguém tomará
o seu lugar naquele barco do Guadiana?
Ao ritmo lento
da remada, o pescador continuou a cantar. No fim, os turistas romperam em
aplausos e aos bravos!, como se estivessem em plena Ópera de Berlim. O
pescador retomou as cantigas. Fui-o seguindo, até o perder na curva do rio.”
O texto que acabo
de transcrever foi escrito, e publicado, há cerca de 15 anos, quando vivia em
Mértola. Enganei-me. Estava errado e constato-o com prazer. O cante não
definha, e a classificação como Património Cultural Imaterial da
Humanidade, lograda há poucas horas, é a prova viva do meu erro. O cante
enquanto encenação e forma de desfile e atuação em palco é coisa recente. O
cante era, sobretudo, o das tabernas e das festividades. E o do trabalho, bem
entendido. Decisivo mesmo é que se perpetue e eternize. E isso já não depende
das classificações. Depende de nós.
Crónica publicada em "A Planície" de 1.12.2014.
Quem é o da fotografia? É o jornalista Pedro D'Anunciação. Que se entreteve a escrever no "Sol" uns disparates sobre o cante alentejano. Os franceses tiveram o D'Artagnan, nós temos o D'Anunciação... Cada um tem o D' que pode.
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