A
primeira indicação foi quase misteriosa, “para fazeres as impressões em suporte
digital vais à AGIR”, determinou o Luís. AGIR só me fazia lembrar um daqueles
grupúsculos de intervenção política que enxameiam, como se fossem muito
relevantes, as páginas dos jornais. Não, não é nada disso e fica em Camarate,
clarificou o Luís. Camarate é um sítio mítico da política portuguesa, mas eu
nunca tinha ido a Camarate. A indicação da morada da empresa não era evidente.
Uma Rua Particular, na Quinta das Rosas, e eu não fazia a mínima ideia de como
lá chegar. Rua Particular parece coisa improvável, mas é mesmo assim.
Imaginei-me a entrar num táxi e o taxista a virar-se para trás, de ar
furibundo, a perguntar “e essa merda fica onde?”. Já me aconteceu e não me
apetecia repetir.
Aí
vou, eixo norte-sul fora. Há uma rotunda, outra rotunda, é sempre na primeira à
direita e passo por um palacete do século XIX. É um daqueles que encontramos
nas obras de Eça de Queirós, mas já não encontramos púdicas donzelas, nem
impúdicas miss Sarah. Quase todas as casas senhoriais faliram, passaram a
turismos de habitação ou se “equipamentarizaram”: lares, bibliotecas, museus...
A
partir daí, é outra Camarate que emerge. A clandestinização do espaço é geral.
A balbúrdia urbana também. Resolvo não usar o google mas só para ver o que
acontece. Há ruas progressistas – Ramiro Correia, Adriano Correia de
Oliveira... – e outras colonialistas – Heróis de Mucaba, Santo António do
Zaire, Heróis dos Dembos... – , que entrocam em vias ora enigmáticas (Rua
Projetada A), ora bucólicas (Rua das Oliveiras). Umas acabam nas outras, em
harmonia. Ninguém se incomoda. Somos assim. Complacentes e distraídos.
Foi
assim que desemboquei no “Sousa dos Radiadores”. Ali perto, um senhor, de ar
vínico e rotudamente aposentado, nunca ouvira falar da AGIR. Como seria de
imaginar. Desisto da navegação à vista e invoco São Google. Estava, afinal,
muito perto. Retomo o caminho, por ruas de prédios escalavrados. Há velhas marquises
de alumínio, à mistura com jardins de infância de nomes imaginativos. Vivendas
dos anos 50, blocos de habitação e armazéns acotovelam-se, numa lógica obscura.
Há cores e sons em desarmonia, por toda a parte.
Estaciono,
numa rua deserta e onde só há armazéns. O ambiente é de série policial
americana. Não se vê vivalma e os portões estão fechados. Alguém me acena, à
distância. Chegara à AGIR. Recolho as impressões e saio, em direção à
auto-estrada... Deixo para trás a improvisação de Camarate, as marquises, a
parafernália de cores, os armazéns metidos em casas e as oficinas de nome
tipicamente lusitano. À medida que me afasto, ganho uma certeza: só em Portugal
um sítio como Camarate é possível. A inversa é, também, verdadeira. Pela
simples razão que Camarate é um espelho de Portugal. E não é de agora. É-o de
há muitos anos.
Crónica publicada hoje, em "A Planície".
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