segunda-feira, 1 de junho de 2015

PALMYRA


Quando saí de Palmyra, em direção a Damasco, pensava que poderia voltar um dia. Nesse outono de 2003 eram raros o turistas ocidentais na Síria. Os sucessivos conflitos na região tornavam aquele País como “desaconselhável”. Ainda assim, nada de especial se passou, e o trajeto pelo deserto foi uma tranquila caminhada que se poderia repetir a qualquer altura. Recordo que, a meio da jornada, parámos numa baiuca com o improvável nome de Baghdad Café... Foi no dia 12 de outubro e ninguém sonhava o que estava para vir. Bashar al-Assad, o tímido oftalmologista que não estava destinado à presidência (esse lugar pertenceria a Bassel, sucessor previsto de Hafez el-Assad, não fosse o destino ter-lhe trocado as voltas..), estava há pouco no Poder e os Estados Unidos ansiavam defenestrá-lo. Falharam e Bashar parece agora um santo, comparado com o Estado Islâmico.

Palmyra era então um sítio à procura de turistas. Os hotéis começavam a invadir o palmar e havia a sensação que a cidade iria sucumbir ao turismo de massas. Retomo o que em 2005 escrevi num livrinho sobre a Síria: “O coração da Síria Antiga está em Palmyra. A saga de Palmyra é notável, e inclui um desafio a Roma e uma independência ganha por pouco tempo. Roma ficava muito longe e a cidade, no meio do seu oásis, a meio caminho entre o Eufrates e o Mediterrâneo, não resistiu à tentação da liberdade. Quatro anos durou a aventura (268-272), tempo curto mas que chegou para imortalizar a cidade e Zenobia, a sua rainha. Os idiomas oficiais em Palmyra eram o grego e o aramaico. O grego ficou nas pedras e já só interessa aos epigrafistas, aquelas pessoas que transformam a história de outras pessoas em traços e símbolos e em fórmulas de gramática. O aramaico cruzou milhares de anos, tornou-se numa ilha de sons que muito poucos entendem e já só é falado em duas ou três aldeias das montanhas do Kalaamoun.

Palmyra é um mostruário de arquitraves, de fustes, de capitéis, de recordações de uma cidade perdida. Chega-se ao oásis de Palmyra depois de cruzar o deserto da Síria, entra-se na cidade pelo ocidente, pela zona onde está o vale dos túmulos. Para lá das ruínas e da cidade nova fica a frescura do oásis. As azinhagas que o cruzam estão, contudo, tão abandonadas como a alameda de Apameia. As hortas, que podiam ilustrar algum relato bíblico ou das Mil e Uma Noites, já pouco produzem, e o rumor da gente que outrora se ouvia pelos vergéis deu lugar ao som dos passos de alguns viajantes mais curiosos. São eles quem franqueia os campos de cultivo, por entre muros que não voltarão a ser reparados e no meio de um silêncio terrível, já só quebrado pelo som dos passos dos que percorrem o oásis à sombra das palmeiras.”

Talvez por isso não recorde nada, rigorosamente nada, da moderna cidade de Palmyra. Os três dias ali passados correram a uma velocidade vertiginosa, num quase torpor, no meio de uma cidade antiga. As memórias começam a confundir-se, à distância destes anos e Palmyra é agora uma amálgama de recordações: o jantar ao luar no relvado do Hotel Zenobia com a exótica Paloma Canivet (e com o António Cunha também...), as deambulações feitas até até à exaustão pelo oásis, as repetidas passagens pelas ruínas da cidade de outrora.

O abandono do oásis parecia prenunciar o fim de um mundo. Mas não o horror que se estendeu sobre a cidade. A morte chegou a Palmyra nesta primavera. Choremos agora... A História do estendal de destruição que o Ocidente permitiu e, sobretudo, cultivou ao longo dos anos no Médio Oriente está por fazer. Mas será feita um dia, decerto. Já cá não estarei. Palmyra, e todas as outras palmyras, também não.

Texto publicado hoje no jornal "A Planície"

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