quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

NATAL TROPICAL

Um Carnaval antecipado? Cristãos-novos em pleno desrespeito pela religião que tinham dito abraçar? Apenas uns copos a mais? É quase certo que não viremos a saber com rigor o que ia na cabeça dos homens que montaram uma farsa na véspera do Natal de 1562, em Bugendo, terra da Guiné da qual não reza a história.

Tudo começou uns dias antes, quando Francisco Jorge, feitor de S. Domingos, pediu a António Luís, o “Boca Fede” de alcunha, um texto para ser representado na noite de Natal. Os versos foram feitos, mas a encenação ultrapassou em muito aquilo que o autor poderia supor.

Os convivas juntaram-se para uma consoada de carnes e frutos doces onde a bebida terá corrido em abundância. Admitiria mais tarde um dos participantes que todos “tinham comido e bebido a seu prazer e estavam muito quentes”. Talvez por isso, e para desespero do “Boca Fede”, em vez dos inocentes versos que estavam preparados desenrolou-se um espantoso e incontrolável happening. Primeiro, entrou em cena um tal Mestre Diogo, alentejano nascido no Torrão que, vestido de mulher, e rodeado por 10 ou 12 homens disfarçados de “bailarinas”, cantou músicas pouco condizentes com a quadra natalícia.

Dois dos que assistiam à função perguntavam, de máscaras de papel no rosto: “Já pariu Maria?”. Alguns berravam: “Que pariu? Macho ou fêmea?”. Retorquiam outros “macho”. E à pergunta “onde?”, uns diziam que em Belém, havendo quem afirmasse que “tinha sido em Bugendo, terra da Guiné”. Quando alguém perguntou que se haveria de oferecer ao Menino, um garantiu que lhe daria um gabão que tinha uma racha, ao que outro acrescentou, também como prenda, um porco de fumeiro e uma réstea de alhos. Para além de 20 ou 30 cristãos-novos estavam presentes outros homens a quem os cantares e dichotes pareceram perfeitamente despropositados. A história chegou aos ouvidos da Inquisição. Na devassa que se seguiu tudo foi esquadrinhado: quem esteve e o que disse; que papel desempenharam na farsa fulano e beltrano. Acabaram por vir à baila histórias que pouco tinham a ver com os acontecimentos de Bugendo e que exemplificam bem o tipo de interrogatório que era então usual.

O processo de Mestre Diogo, de 34 anos, “solorgião”, cristão-novo lançado na Guiné, desenrolou-se a partir de abril de 1563. Nessa data, o bispo de Santiago, em Cabo Verde, deu seguimento às denúncias segundo as quais em Bugendo, terra da Guiné, cristãos-novos tinham representado um auto na véspera de Natal, durante o qual um cristão-novo “muito feio”, Mestre Diogo, aparecia vestido de mulher e outros intervenientes interrogavam-se sobre se a Virgem Maria teria dado à luz em Belém ou em Bugendo.

D. Francisco ordenou o levantamento de um auto de averiguações e, até junho de 1563, foram ouvidas diversas testemunhas dos acontecimentos pretensamente ocorridos na casa do feitor de São Domingos, Francisco Jorge, na noite de 24 de dezembro de 1562, protagonizados pelos tais 20 ou 30 cristãos-novos, tratantes ou negreiros, entre os quais, para além de Mestre Diogo e do “Boca Fede”, figuravam Jorge Fernandes (o do nariz furado), Teotónio Fernandes (o “Paião”), um alfaiate com uma venda no olho, de nome desconhecido, Aires Lobo (o “Marquesota”), António Duarte, algarvio conhecido por “Corcoz”, e os irmãos Poldrinhos. As diversas testemunhas, depondo na Ribeira Grande perante o vigário geral e um escrivão, referiram-se também à morte, à maneira judaica, de bodes e galos brancos, a trovas ditas sobre a cabeça cozida de um porco, ao roubo de um retábulo pelos negros e ainda à história do famigerado “Braço de Balança”, presumivelmente queimado pela Inquisição em Lisboa, e do seu filho, cujo nome desconhecemos, e que costumava perguntar “como quereis que não haja fomes no reino se em cada ano fazem quatro vezes cadafalso?”.

Quase todos os intervenientes no insólito serão terão escapado sem qualquer punição. Embora a Inquisição se esforçasse por prender “certos cristãos-novos que andam no sertão” Lisboa ficava demasiado longe e os judeus da Guiné gozavam do apoio do feitor, “tão judeu como eles”. De Mestre Diogo sabemos que foi preso em novembro de 1563 e que em setembro de 1564 estava no cárcere do Santo Ofício, em Lisboa. Foi interrogado quatro vezes, confessando que a brincadeira do auto de Natal fora de mau gosto e acusando outros cristãos-novos de terem afirmado que a Virgem dera à luz em Bugendo e não em Belém. Reconheceu ainda que não comungou durante os seis anos em que esteve na Guiné, aceitando as culpas por quanto disse e por tudo aquilo que se esqueceu…

O pai de Mestre Diogo acabou por pagar uma fiança de 500 cruzados, o que possibilitou a libertação do farsante. Dois anos depois dos acontecimentos de Bugendo, o seu principal protagonista estava de novo em liberdade. Sobre o que aconteceu a seguir não temos notícia. Parece-nos lícito pensar que a sua paixão pela arte de Talma tenha esmorecido e que nos anos de vida que lhe restaram se tenha dedicado apenas a tratar da sua fazenda.


Texto publicado no Diário do Alentejo, em conjunto com Carlos Lopes Pereira, em 26 de dezembro de 1997, como o título Uma farsa na noite de Natal. A base para este trabalho está numa publicação do Pe. António Baião.

1 comentário:

Lucrecia disse...

Vocês tem uma maneira muito interessante de falar de política.Eu sei que os problemas são parecidos em todo lugar. Sei também que há políticos e políticos. Mas lendo vocês comentando sobre economia, sobre saúde,sobre algumas atitudes do governo que não agradam a população;convocação para que os cidadãos se posicionem diante de determinados assuntos, enfim...o fato é que ,ler vocês, despertou em mim,(de novo,houve um tempo em que participava com entusiasmo de campanhas , mas...) o intteresse pela plítica em meu pais.Não vou me filiar a nenhum partido. Apenas quero ouvir e ler sobre.