Um Carnaval antecipado? Cristãos-novos em
pleno desrespeito pela religião que tinham dito abraçar? Apenas uns copos a
mais? É quase certo que não viremos a saber com rigor o que ia na cabeça dos
homens que montaram uma farsa na véspera do Natal de 1562, em Bugendo, terra da
Guiné da qual não reza a história.
Tudo
começou uns dias antes, quando Francisco Jorge, feitor de S. Domingos, pediu a
António Luís, o “Boca Fede” de alcunha, um texto para ser representado na noite
de Natal. Os versos foram feitos, mas a encenação ultrapassou em muito aquilo
que o autor poderia supor.
Os
convivas juntaram-se para uma consoada de carnes e frutos doces onde a bebida
terá corrido em abundância. Admitiria mais tarde um dos participantes que todos
“tinham comido e bebido a seu prazer e estavam muito quentes”. Talvez por isso,
e para desespero do “Boca Fede”, em vez dos inocentes versos que estavam
preparados desenrolou-se um espantoso e incontrolável happening. Primeiro,
entrou em cena um tal Mestre Diogo, alentejano nascido no Torrão que, vestido
de mulher, e rodeado por 10 ou 12 homens disfarçados de “bailarinas”, cantou
músicas pouco condizentes com a quadra natalícia.
Dois
dos que assistiam à função perguntavam, de máscaras de papel no rosto: “Já
pariu Maria?”. Alguns berravam: “Que pariu? Macho ou fêmea?”. Retorquiam outros
“macho”. E à pergunta “onde?”, uns diziam que em Belém, havendo quem afirmasse
que “tinha sido em Bugendo, terra da Guiné”. Quando alguém perguntou que se
haveria de oferecer ao Menino, um garantiu que lhe daria um gabão que tinha uma
racha, ao que outro acrescentou, também como prenda, um porco de fumeiro e uma
réstea de alhos. Para além de 20 ou 30 cristãos-novos estavam presentes outros
homens a quem os cantares e dichotes pareceram perfeitamente despropositados. A
história chegou aos ouvidos da Inquisição. Na devassa que se seguiu tudo foi
esquadrinhado: quem esteve e o que disse; que papel desempenharam na farsa
fulano e beltrano. Acabaram por vir à baila histórias que pouco tinham a ver
com os acontecimentos de Bugendo e que exemplificam bem o tipo de
interrogatório que era então usual.
O
processo de Mestre Diogo, de 34 anos, “solorgião”, cristão-novo lançado na
Guiné, desenrolou-se a partir de abril de 1563. Nessa data, o bispo de
Santiago, em Cabo Verde, deu seguimento às denúncias segundo as quais em
Bugendo, terra da Guiné, cristãos-novos tinham representado um auto na véspera
de Natal, durante o qual um cristão-novo “muito feio”, Mestre Diogo, aparecia
vestido de mulher e outros intervenientes interrogavam-se sobre se a Virgem
Maria teria dado à luz em Belém ou em Bugendo.
D.
Francisco ordenou o levantamento de um auto de averiguações e, até junho de
1563, foram ouvidas diversas testemunhas dos acontecimentos pretensamente ocorridos
na casa do feitor de São Domingos, Francisco Jorge, na noite de 24 de dezembro
de 1562, protagonizados pelos tais 20 ou 30 cristãos-novos, tratantes ou
negreiros, entre os quais, para além de Mestre Diogo e do “Boca Fede”,
figuravam Jorge Fernandes (o do nariz furado), Teotónio Fernandes (o “Paião”),
um alfaiate com uma venda no olho, de nome desconhecido, Aires Lobo (o
“Marquesota”), António Duarte, algarvio conhecido por “Corcoz”, e os irmãos
Poldrinhos. As diversas testemunhas, depondo na Ribeira Grande perante o
vigário geral e um escrivão, referiram-se também à morte, à maneira judaica, de
bodes e galos brancos, a trovas ditas sobre a cabeça cozida de um porco, ao
roubo de um retábulo pelos negros e ainda à história do famigerado “Braço de
Balança”, presumivelmente queimado pela Inquisição em Lisboa, e do seu filho,
cujo nome desconhecemos, e que costumava perguntar “como quereis que não haja
fomes no reino se em cada ano fazem quatro vezes cadafalso?”.
Quase
todos os intervenientes no insólito serão terão escapado sem qualquer punição.
Embora a Inquisição se esforçasse por prender “certos cristãos-novos que andam
no sertão” Lisboa ficava demasiado longe e os judeus da Guiné gozavam do apoio
do feitor, “tão judeu como eles”. De Mestre Diogo sabemos que foi preso em
novembro de 1563 e que em setembro de 1564 estava no cárcere do Santo Ofício,
em Lisboa. Foi interrogado quatro vezes, confessando que a brincadeira do auto
de Natal fora de mau gosto e acusando outros cristãos-novos de terem afirmado que
a Virgem dera à luz em Bugendo e não em Belém. Reconheceu ainda que não
comungou durante os seis anos em que esteve na Guiné, aceitando as culpas por
quanto disse e por tudo aquilo que se esqueceu…
Texto publicado no Diário do Alentejo,
em conjunto com Carlos Lopes Pereira, em 26 de dezembro de 1997, como o título Uma
farsa na noite de Natal. A base para este trabalho está numa publicação do Pe. António Baião.
1 comentário:
Vocês tem uma maneira muito interessante de falar de política.Eu sei que os problemas são parecidos em todo lugar. Sei também que há políticos e políticos. Mas lendo vocês comentando sobre economia, sobre saúde,sobre algumas atitudes do governo que não agradam a população;convocação para que os cidadãos se posicionem diante de determinados assuntos, enfim...o fato é que ,ler vocês, despertou em mim,(de novo,houve um tempo em que participava com entusiasmo de campanhas , mas...) o intteresse pela plítica em meu pais.Não vou me filiar a nenhum partido. Apenas quero ouvir e ler sobre.
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