Foi meu professor sem nunca me ter dado uma aula. Leio-o desde os meus tempos de liceu (1978 ou 1979). Admiro-o desde então. É um dos nomes maiores da Cultura Portuguesa. Entrevistei-o para o livro Historiador em discurso directo, editado pela Câmara de Mértola em 2003. Em 2008 encarregaram-me, na Universidade do Algarve, de redigir um parecer que justificasse a atribuição do grau de Doutor Honoris Causa a António Borges Coelho. Fiquei lívido "quem diabo sou eu para avaliar o António?". Escrevi então um texto mais com o coração que outra coisa...
Há um mês, o semanário Sol entrevistou-o. Aqui reproduzo o texto do jornalista César Avó. Na íntegra, porque tudo o que o António diz (nos) é essencial.
Aos 86 anos, o historiador lança o quinto volume da sua História de Portugal - Os Filipes e trabalha já no próximo. Desculpa para ouvirmos um vulto da Cultura falar não só sobre a História de Portugal, mas também da sua, da descoberta de Marx em Murça através de um pedreiro à prisão em Peniche, da primeira experiência nos jornais à entrada na Faculdade de Letras, dez anos depois de Raízes da Expansão Portuguesa ter feito furor e sido censurado.
Em Os Filipes há algum dado que tenha destapado?
Tem uma estrutura bastante diversificada e que partiu dos factos, uns mais conhecidos, outros menos, uns propositadamente esquecidos e fundamentais que ficaram no limbo e agora foram postos em relevo. Por exemplo, a resistência dos Açores aos Filipes durante três anos é conhecida, mas praticamente poucos portugueses, excepto os açorianos, terão consciência disso. Foi uma resistência terrível. Também não sendo uma novidade, subestima-se o que foi a repressão em Lisboa e o assalto espectacular à capital pelo exército do duque de Alba e pela esquadra do marquês de Santa Cruz. E fala-se na monarquia dual, mas não era nada, era o projecto da monarquia católica universal. É evidente que o elemento que sustentava essa guerra era o ouro e a prata produzidos na América espanhola. Há livros fundamentais e a História de Portugal dirigida por Damião Peres em 1940 tem grandes colaboradores e está em muitos aspectos inteiramente válida hoje.
Pensava que era datada, típica do Estado Novo.
É uma visão nacionalista, mas tem alguns autores que não perderam a actualidade na História política. Nos últimos anos tem havido uma subestimação da História Política. Nenhum autor, sobretudo isolado, pode abarcar toda a vastíssima informação que houve no passado. Também não é necessário lê-la toda, mas a mais significativa. Não é por deitar pedras daqui da janela que provo a lei da atracção universal. Já está provada. Não se pode é ignorar a História Política. Os homens fazem a História e herdam um passado. Foi assim e não assado porque intervieram, quer colectivamente, quer individualmente. O historiador tem de estar envolvido na política, não pode estar a sachar cebolas e se não acompanha o movimento colectivo não compreende os documentos que lhe aparecem à frente.
Voltando ao livro, há pormenores muito interessantes, como os falsos sebastiões.
É curioso e mostra como aquilo que alguns autores falaram da identidade hispânica e que se davam todos muito bem, ao nível popular, caramba, houve uma reacção que atingiu proporções… Oliveira Martins exagerou ao dizer que Portugal acordou com as bofetadas da França e de Inglaterra. Houve apoios e interesses dos ingleses e dos franceses, mas houve participação popular.
O livro demonstra muitas mudanças de posição.
Não é só hoje. Se hoje fizermos um retrato dos políticos no 25 de Abril e agora há mudanças do arco-da-velha.
Cita muito uma fonte, Pero Roiz Soares, que tem um estilo muito romanceado. É totalmente crível?
A literatura não é inimiga da História. Fernão Lopes, João de Barros ou Alexandre Herculano são grandes escritores. A História não é uma linguagem matemática. Utilizo esta fonte que tem sido completamente ignorada, mas ela é confirmada por uma série de outras fontes. Ele faz um relato fantástico sobretudo de Lisboa num período determinante para a História dos Filipes.
Qual foi o grande erro da dinastia filipina? Não transformar Lisboa na capital do reino?
Isso é entrar muito nos 'ses'. Um dos 'ses' fundamentais é que a grande burguesia foi expropriada. Quem são as principais vítimas da Inquisição? A grande burguesia portuguesa e a que emigrou para Espanha e outros locais e à qual não lhe era permitida o desenvolvimento. Os que se mantiveram cá punham os capitais nos inimigos de Espanha. O grande problema é a derrota do projecto filipino, no final da Guerra dos Trinta Anos, com o Tratado de Vestfália que é a vitória da Europa do Norte, e a derrota do Papado e da monarquia habsburga. Isso de a capital ser Lisboa, especula-se, é uma coisa tradicional. Se tivesse acontecido seria mais difícil a Restauração, indiscutivelmente.
Disse que a História política é subestimada. Revê-se na corrente de Fernand Braudel?
Foi uma grande corrente. Eu fui sempre muito individualista. Se for ver as minhas referências vai ler que me põem sempre como marxista e nem sequer sabem o que li. Tive muita honra e muito orgulho em ler Marx, mas li muitos outros filósofos e muitos outros contemporâneos. A História não se faz através da ideologia, faz-se a partir dos factos e há ferramentas que são específicas da História. Pode-se dizer que Marx me influenciou no sentido de olhar para as pessoas? Sim, e todo o mundo contemporâneo. Há um autor contemporâneo por quem tenho uma admiração especial, o Eric Hobsbawm, que tem uma obra fantástica, A Era dos Extremos, e que é uma época mais difícil trabalhar, que é a época contemporânea. Agora menos, mas durante anos tinha sempre um livro de filosofia à cabeceira. Podia ser de um pré-socrático, podia ser dos dois filósofos que mais estudei na minha vida, Espinosa e Leibniz. Marx influenciou-me na minha vida política, o que não quer dizer que só falo depois de pedir opinião ao Marx.
Revê-se hoje em Marx?
Considero um livro como o primeiro volume de O Capital uma obra admirável. Para achar que tem razão em tudo? Não pode ser esse o espírito de leitura, que é a leitura crítica. Se me perguntar pelo Manifesto Comunista, está actual? Há coisas que estão actuais, outras não. O tempo amarelece as folhas.
Poria a pergunta de outra forma. Revê-se na aplicação do marxismo na política?
Isto vai escandalizar os meus amigos: a aplicação do marxismo é a introdução de um certo espírito religioso na política. Aceito que na política haja certos autores como modelos. Mas não vou pedir licença ao autor tal para aprovar uma certa lei. Temos de partir da realidade viva e temos instrumentos de pensamento e aí entra Marx e entram outros autores. E entra tudo o que foi o final do século XIX e o século XX. E quando entra tudo, meus amigos, temos de deitar a mão à cabeça e confessar que correu de uma forma… enfim, não quero mais falar sobre isso.
Quando é que Marx entrou na sua vida?
Muito cedo, tinha eu uns 17 anos, em Trás-os-Montes.
Não devia ser um autor muito lido em Murça.
Saí do seminário convencido de que ia para o Inferno, mas a achar que antes isso do que continuar ali. Acabei por ser expulso. Saí quase com dificuldade em falar com as pessoas. Depois tornei-me muito amigo de um sobrinho do Militão Ribeiro, um grande militante comunista, e um mártir do fascismo, a expressão que lhe cabe é essa. E foi através de um pedreiro que li o Manifesto Comunista, numa tradução espanhola. Tinha escondido numa lata do quintal várias obras e disse-me: 'Ó senhor Toninho, leia que vai gostar'. E de facto gostei, é um texto político fantástico.
Saiu do seminário porquê?
Sentia-me enclausurado. Disseram-me que perdi a vocação e que esse pecado, segundo o confessor, era imperdoável. O que até nem é correcto do ponto de vista religioso, porque todo o pecado é perdoável. Os nossos Descobrimentos foram fertilíssimos em pecados perdoáveis. Não sei se a consciência tinha aguentado tanto pecado mundo fora (risos).
Esteve lá quantos anos?
Cinco. Saí quando terminou a guerra, 1945. No quinto ano não estudei e escrevi uma História da Literatura Grega e Latina e queria ir embora. Estava a pensar fugir, mas acabei expulso.
Como vem parar a Lisboa?
Concorri a Direito e vim fazer o exame de admissão. Foi com o pretexto de que vinha estudar, mas já na altura tinha ideias revolucionárias, e a família não queria que viesse. Cheguei a Lisboa e não tinha dinheiro. Tive o apoio de estudantes de Medicina, que me matavam a fome e vivi no quarto de um conterrâneo. Só três meses depois consegui arranjar emprego.
Lisboa abriu-lhe os horizontes.
As eleições presidenciais e a faculdade também abriram… Entrei no MUD Juvenil.
Quem era a sua referência na altura?
O Carlos Aboim Inglez, que era meu colega de ano e de curso, e que me introduziu no MUD Juvenil. E um médico radiologista, que ainda hoje é vivo, que me matriculou em Histórico-Filosóficas porque desisti de Direito. Fiz o primeiro ano, depois vivi como membro do MUD Juvenil como quadro clandestino até ser chamado para funcionário do Partido Comunista durante meio ano.
Preferiu Lisboa a Coimbra, porquê?
Na minha terra não andavam na universidade sequer dez pessoas. Andava o meu irmão que era filho de uma lojista e de um guarda-fios, e depois havia os filhos dos senhores agrários e grandes comerciantes. Iam geralmente para Coimbra, para as estúrdias, era isso que atraía. Lisboa abria a porta para o mundo. E eu já tinha vivido em Lisboa durante dois anos. Os meus pais fixaram-se entre o largo do cemitério do Alto de São João e a Graça. A minha mãe abriu uma espécie de mercearia e o meu pai trabalhava como guarda-fios.
Por que voltaram para Murça?
A minha mãe tinha pequenas propriedades e havia diferenças no casal por causa disso. E o meu pai conseguiu ser colocado em Murça. Já antes tinha ajudado na construção das linhas da zona de Aveiro. O meu irmão mais velho foi gerado nessa linha (risos). A minha mãe voltou à terra e ficou muito conservadora, muito católica apostólica romana. Só no fim da vida é que ficou cheia de dúvidas.
E quanto a si, é crente?
Não. Houve coisas muito positivas na Igreja portuguesa e outras extremamente negativas. Respeito muito os homens da Igreja actual e ex-colegas meus. Por outro lado, em relação ao destino do homem, tenho a noção clara de que somos bocadinhos de nada no universo. A mitologia das religiões intelectualmente não me diz nada. Percebo, mas estou perto do Espinosa, quando escreveu que são instrumentos teórico-práticos de obediência. Sem ritual não há religião, não há crença. Eu mantenho algumas coisas. Às vezes gosto de cantar o cantochão. Gosto, é belo, acalma-me. Tive uma batalha muito grande para me libertar, tive conflitos e problemas gravíssimos na minha vida, mas esse não aflora.
É ateu?
Se lhe dermos o significado do Deus das religiões positivas, nesse sentido sou ateu. Tenho ternura por Jesus Cristo. Tive este sentimento ao longo da vida, gosto dos Salmos, não propriamente da História do povo de Israel. Agnóstico também não sou, porque significa que sobre este tema tenho dúvidas e se calhar o Deus de Israel existe e vai julgar-me. Essa conversa não é para mim. Há pessoas que têm necessidade de acreditar nos símbolos, etc., eu compreendo, tudo bem. Mas foram utilizados para fins nada brilhantes, como é o caso da Nossa Senhora de Fátima. Não brinquem comigo, vão lá com os três pastorinhos.
Acha que foi uma fraude?
Está provado pela documentação. Mas dirão: a razão não chega, a crença nasce do sentimento. No meu tempo houve uma segunda Nossa Sra. de Fátima em Trás-os-Montes. Não eram três pastorinhos, mas uma pessoa que tinha as chagas de Cristo. Um dia juntaram-se 50 mil pessoas e viram o sol a mudar de cor. Só que era gente a mais, uma concorrência muito grande para Fátima. E a senhora veio para a penitenciária de Coimbra. Esteve lá uma semana e continuou com as chagas. Proibiram as freiras de visitá-la, não chegou o nitrato de prata e as chagas acabaram. O padre e o médico seu irmão estavam na base de tudo isso.
Voltando atrás. Quem era o seu controleiro no MUD juvenil?
Era o Dias Lourenço, foi o homem da mais audaciosa fuga de Peniche. E tive um outro, Guilherme de Carvalho, que esteve no Tarrafal, era filho de um banqueiro e é sogro de outro banqueiro, o Pina Moura.
Esteve preso na mesma altura que Álvaro Cunhal?
Estive dois anos com o Cunhal em Peniche.
Foi logo para lá quando foi preso?
Não. Fui preso em Janeiro de 56 e estive meio ano nas celas do Aljube. Depois fui para Caxias, e daí fui levado em Dezembro para o Porto, onde fui julgado no processo do MUD Juvenil. O processo demorou cerca de sete meses, com sessões de manhã, à tarde, e algumas à noite, com 52 réus jovens e dois adultos, que eram o Óscar Lopes e um advogado. Fui condenado a dois anos e nove meses.
Peniche era a mais dura das prisões?
Claro que era. Era um regime celular, cada um na sua cela. Havia quatro faxinas diárias, limpeza, varrer, lavar a loiça e por vezes descascar a batata. Quando não havia castigo uma hora de recreio e havia uma hora à tarde, no refeitório, em que podíamos escrever à família, ler e fazer perguntas por intermédio do guarda: 'Ó senhor guarda, posso perguntar?'. Era este o regime que melhorou ligeiramente pouco antes da fuga. Houve um grande movimento internacional e uma visita de personalidades estrangeiras à prisão. Então deixaram entrar um gira-discos e as perguntas tornaram-se mais simples, mas de resto tudo na mesma.
Conversava com Álvaro Cunhal?
Cifrado. Tínhamos uma linguagem própria. Havia determinadas palavras que não eram as autênticas. No recreio o guarda estava sempre no meio e dizia 'Fale mais alto que eu também quero ouvir'. Mas nós tínhamos a voz treinada e a voz ia até determinado sítio. De vez em quando ia qualquer coisa para o alimentar. E havia contacto com o exterior. A fuga foi organizada no interior e no exterior. Foi uma fuga espectacular.
Teve hipótese de fugir?
Tive. Não quis porque nessa altura continuava no partido mas queria levar a vida que levei depois, isto é, queria escrever, etc. Depois da fuga foi muito difícil, fui parar ao Aljube e à estátua. Represálias. Foi um trauma muito grande na minha vida. Quando saí, mais tarde, estava em liberdade mas sentia uma mágoa pelos outros que lá estavam presos. Os laços que se criam com os companheiros da prisão são indestrutíveis.
Quando é que saiu da prisão?
Em Maio de 62, em plena luta académica.
Entretanto casara-se na prisão.
A minha mulher, Isaura Silva, esteve quatro anos presa. Não era comunista, era do MUD Juvenil, estava envolvida na luta das enfermeiras, pelo casamento das enfermeiras. Estava proibida de me visitar porque não era minha parente. Mas houve uma luta para nos casarmos e acabou por ser autorizado. Aí vai a noiva no carro com o filho do Monjardino, que era o patrão dela na maternidade, e com as testemunhas. As minhas eram a Maria Amélia Padez, uma antifascista casada com um polaco que ajudou muitos portugueses a emigrar para Paris; o Alexandre O'Neill; e os meus cunhados que eram os padrinhos da noiva. O meu sogro fez um escândalo porque eu estava de um lado da mesa e a noiva do outro. Lá ficámos ao lado um do outro e ao fim de uma hora tudo acabou.
A comida era a da prisão?
Não, os meus sogros levaram e também vinho. Nós podíamos beber vinho uma vez por ano, no Natal, uma canequinha.
Como conheceu o O'Neill?
No MUD Juvenil. Fui um dos homens de contacto dele. E foi uma das casas onde dormi. Andei dois anos sem salário nem residência fixa. Com ele discutia poesia. Tínhamos longas discussões e chegou a propor-me fazer poemas em conjunto.
Para as novas gerações a luta da sua mulher é algo de fantástico.
As enfermeiras e telefonistas não se podiam casar, é uma coisa incrível. As pessoas não têm ideia do que era o fascismo e há muita gente que acha que era bom, que havia autoridade.
Como foi quando saiu da prisão?
Tive à volta de 30 empregos. O essencial foi tradutor e explicador de História e Filosofia e fundador d'A Capital. Saí ao cabo de dois anos. Eu estava em liberdade condicional e queriam que eu fosse para a Rodésia cobrir a guerra colonial, e eu recusei. Depois mandaram-me a Peniche cobrir uma visita do Américo Tomás, a guarda de honra eram os guardas prisionais. Quando cheguei à redacção anunciei que me ia embora.
Como é que o tratam? Por professor?
Muita gente trata-me por professor. Estive como professor universitário durante 24 anos na Faculdade de Letras. E no período mais polémico, mais vivo e mais criador da alteração das estruturas, de reformas efectivas, com os estudantes e professores a terem um papel fundamental.
Foi um tempo apaixonante.
Apaixonante. Hoje até me dá alguma tristeza entrar nos corredores da universidade e vê-los quase desertos. Naqueles tempos estavam sempre cheios de gente. E não era só a namorar. Não havia gabinetes, o meu gabinete foram os corredores ou uma sala ad-hoc. A investigação era feita em casa.
Vivia em Lisboa?
Sim, mas coincidiu com o 25 de Abril vir para aqui (Parede). Fui um desalojado do 25 de Abril. A minha casa era de um cunhado meu que estava no exílio e voltou, pelo que vim para a minha casa de férias.
Havia muita discussão na faculdade?
Muita tensão. Mas isso fez parte e era gratificante.
Na altura tudo se punha em causa.
Exactamente. Vou dar-lhe um exemplo, sobre um seminário criado em 1974 sobre o infante D. Henrique. Caiu-me por acaso em cima e eu cheguei à universidade com a fama de ser o diabo vermelho. Quando entrei na sala do seminário verifiquei que os alunos olharam para mim com o ar de 'só nos faltava aparecer este'. Limitei-me a dizer: 'Em relação às vossas opiniões não tenho nada com isso. A única coisa que vocês têm de fazer é basearem-se sempre em documentação e depois têm as opiniões que quiserem'. Sei que passados aí dois meses estavam muito mais exaltados do que eu no mundo social e político. Não que eu fosse discutir política para a aula, na aula discutia as matérias. Para mim foi importantíssimo porque aprofundei conhecimentos e voltei-me para o ensino sempre com a intenção de indagar, de ir ao fundo, de não ficar pelo que disseram todos até à data, mas sim encontrar coisas novas, com base na documentação, e levar os alunos a interessarem-se pela investigação.
Como eram as suas aulas?
Geralmente tinham uma introdução e depois havia um debate sobre a matéria. Havia efectivamente intervenção dos alunos. Eram aulas extremamente vivas.
De certo modo era uma novidade.
Era. No meu tempo, os professores debitavam, os alunos tiravam notas, faziam uma sebenta e empinava-se. Comigo havia uma bibliografia mínima e para avaliação havia um trabalho que podia ser individual ou de grupo.
A sua tese de doutoramento foi sobre a Inquisição de Évora. Porquê?
Começou por uma tentativa de mostrar como o pensamento moderno tinha a ver com a crise de cristãos-novos e cristãos-velhos e a emigração europeia a ela ligada. Tinha como centro a obra de Espinosa e o envolvimento dos cristãos-novos portugueses em Amesterdão. À medida que avancei à procura dos familiares de Espinosa levou-me a entrar a fundo na Inquisição de Évora. Alguns alunos meus fizeram o inventário dos processos da Inquisição de Évora até um determinado período e eu trabalhei sobre isso durante quase nove anos. Julgo não se ficar apenas pelo tribunal mas tenta verificar e qualificar as vítimas e dar ideia do que foi o imenso sofrimento das vítimas e do que isso significou para a cultura e para a História portuguesa e de que ainda hoje temos os restos em cima de nós.
Que restos são esses?
É o espírito da denúncia: o tribunal vivia da denúncia, o pensamento estava continuamente em análise, os próprios pensamentos secretos estavam sob alvo da pesquisa da Inquisição. Dizia-se antes que a Inquisição nos livrou das guerras da religião. E o que ela nos trouxe? Queimaram em praça pública três mil desgraçados, muitos deles inocentes. Isto é diabólico e nós como povo ainda não tomámos consciência do que foi. Nem a Igreja, que foi a principal responsável.
A Inquisição foi um dos factos mais tenebrosos da História de Portugal?
Em certo sentido foi o pior, porque se manteve quase durante três séculos. Ao nível criador é terrível. Não é um acidente como o terramoto de 1755 ou a guerra da Restauração, que foi muitíssimo violenta. A Idade Média foi muito dura mas pôs a região portuguesa e de certo modo a Península Ibérica num grande desenvolvimento, para os parâmetros da época. Foi uma época extremamente criadora, foi essa geração de Aljubarrota que lançou Portugal na expansão.
Estava a dizer que ficou nos portugueses o espírito da denúncia. E que mais marcas?
O medo.
Os portugueses continuam com medo?
Ainda há muito medo. A prova disso é que os movimentos cívicos em Portugal têm pouca força. A situação social actual, com desemprego em massa, cria um medo terrível. Esta é a situação real no inconsciente colectivo, sobretudo nas zonas mais conservadoras.
Tendo em conta que estudou a presença árabe no nosso território, surpreende-o a barbárie do Estado Islâmico?
Se regressarmos à Idade Média, há um islão criador, no sentido em que vai buscar o passado greco-romano, e que conservou algumas obras fundamentais. E do lado cristão, vamos à Restauração, e como era castigada uma conjura? Pescoço fora, forca de cabeça para baixo ou de cabeça para cima, arrastados depois de mortos pelas ruas e partidos aos bocados. Toda a prática do medo é bárbara, miserável é o termo, e o equivalente quando destroem a memória da humanidade. Na verdade o Ocidente tem também muita culpa no cartório. A exploração das matérias-primas com a conivência de pequenas dinastias e de ditaduras terríveis. O que não quer dizer que devemos ficar parados a olhar.
Também pelo facto de muitos desses combatentes serem ocidentais.
Porque é que na Europa tantos jovens se deixam atrair, embora muitos enganosamente, para a aventura? O número de jovens que nos países desenvolvidos não se acham realizados é extremamente preocupante.
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