sábado, 26 de maio de 2018

350.400 HORAS MAIS TARDE... (texto lido ontem)


Há algumas tentações que, segundo me parece, devemos tentar evitar neste tipo de revisões. Fujamos ao saudosismo, à auto-complacência e à auto-justificação. 

Como começou e porque começou o projeto de Mértola? Foi fruto de uma determinada época e de um conjunto de circunstâncias, hoje irrepetíveis. E de um certo estilo de fazer Academia, hoje totalmente impossível. Vou tentar fugir a exemplos pessoais, por isso esgoto já essa quota. Primeiro exemplo: na cadeira de História da Arte da Antiguidade Clássica, Paleocristã e Bizantina (geral e em Portugal) não me apetecia fazer um trabalho sobre o tema da cadeira. Propus um levantamento sobre os fornos de pão ainda existentes em Moura. “Ah, pois, pois, isso é giro, faz lá”, respondeu o Cláudio. E fiz. Hoje, não avalio se bem ou mal, uma tal coisa seria inaceitável. Segundo exemplo: num momento de debate quente, logo a seguir à atribuição do Prémio Pessoa (que ainda deu direito a alguma celeuma), o Cláudio virou-se para o Miguel Rego e para mim e disparou “quero lá saber dos cacos, o essencial disto é a Política”. Creio que é. Ao fim de todos estes anos, o factor mais importante deste projeto tem a ser com o seu posicionamento político e social. E com o que teve de formativo para tantos de nós. Não se trata aqui de por o Cláudio num andor – ainda não -, mas de o termos como catalizador de muitas coisas que aqui se passavam. Algumas passavam-lhe mesmo ao lado, mas se ele não estivesse cá não teriam acontecido. 

É preciso recuar quase 40 anos para termos a perceção que o projeto de Mértola enquanto tal (como ideia pré-concebida) nunca existiu. Não havia projeto algum, com planos quinquenais, e com objetivos. O projeto foi-se construindo. Na altura não se falava em “deliverables” e o que nós queríamos fazer, todos nós, eram coisas. Ou fotografia, ou restauro, ou aprender técnicas tradicionais de construção, ou fazer levantamentos de tecelagem. Ou, até, arqueologia. Deve haver nos arquivos da Câmara e do Campo, o primeiro projeto de adaptação do antigo celeiro da Casa de Bragança a museu. Era um projeto bastante conservador. Com uma coleção permanente e com setores de arqueologia e de etnografia. O que aconteceu não teve, felizmente, nada a ver com isso. A primeira exposição, aberta ao público no outono de 1982, apresentava as cerâmicas islâmicas e a arte sacra em perigo, que fora recolhida em várias igrejinhas do concelho. O painel de entrada, onde a filosofia do projeto se explicava, foi escrito à mão. O pequeno museu tinha e era um misto de exposição e de oficina. Alguns dos restauros eram feitos no local, sob a direção de Monique Pequinot. Luís Pavão, o primeiro dos nossos fotógrafos, andava um pouco por toda a parte. A escavação da alcáçova era, nessa altura, o centro das nossas atividades. Escavava-se das 8 às 13 e das 14 às 18. As trocas de impressões com os colegas de quadrícula foram a nossa grande primeira aprendizagem. Porque os colegas de quadrícula não vinham dos tapetes fofos da Academia e sim dos montes aqui em volta. Eram rapazes do campo. Com horizontes e uma experiência de vida que diferiam dos que nós tínhamos. As nossas conversas andavam em torno da vida, das famílias, do que queríamos fazer e da nossa insuperável otimismo quanto ao modo como íamos mudar o mundo. É justo que se diga que o mudámos na justa medida que que ele nos mudou a nós. Que as mantas e o quotidiano fossem mais importantes que obscuras publicações foi a nossa segunda lição. 

Durante muitos anos, entre 1978 e o verão de 1987 andámos numa expetativa. O Cláudio era renitente - acho que continua a ser – ao contacto com o mundo das empresas e com a banca. Mais do que uma vez começou a abordagem com um “não vimos cá pedir dinheiro”. É claro que íamos, mas ele não o queria admitir. Recordo uma reunião com Rui Vilar, então presidente da Caixa Geral de Depósitos, em que o interpelado, ao ouvir esta frase nos olhou com ar intrigado, certamente pensando “então qual será o motivo da visita?”. 

Em 1987 entram em cenas os projetos da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. José Mariano Gago dava então início à que viria a ser uma das mais importantes revoluções no apoio à Ciência em Portugal. Viria a reforçar essa trabalho à frente do Ministério da Ciência, ao longo de 13 anos. O Campo Arqueológico de Mértola deve-lhe gestos de apoio que, em determinados momentos, foram decisivos. Desde logo nesse anos de 1987. O principal obstáculo às candidaturas da JNICT foi o próprio Cláudio. Estava ausente de Mértola e só a grande custo o demovemos a vir cá assinar os papéis. A frase foi algo como “oh pá isso não vai dar nada; isso já está tudo decidido”. O grande dinamizador deste processo foi Luís Silva. Que a dado momento me disse “se ele não vier, assino por ele”.

Os três projetos da JNICT aprovados – Museologia, História Local e Arqueologia – em breve deram necessidade à criação formal do Campo Arqueológico de Mértola. Que só nasce, formalmente, em 1988. Dez anos após ter iniciado atividade.

Os projetos foram postos no terreno, não sem sobressaltos. Não interessa fazer aqui esse historial, mas em final de 1991, e depois da reprovação da maior parte das novas 
candidaturas, a situação era angustiante. Também não quero recordar aqui as penas desses tempos complicados. O momento decisivo para o Campo Arqueológico tem lugar na noite de 5 de dezembro de 1991, quando é atribuído o Prémio Pessoa a Cláudio Torres. Ele não tinha, na altura, o estatuto e a notoriedade que hoje tem. No dia seguinte, o locutor da Rádio Renascença, certamente mais virado para o automobilismo, dizia, em tom enfático, que o galardão tinha sido entregue ao arqueólogo César Torres. Os dias seguintes foram intensos. O prémio foi contestado por parte da Academia. O que se fazia em Mértola não era Ciência, era Agitprop. Aqui não se publicava, não havia papers, era tudo museus e conversa. O Cláudio reagiu com destempero, aludindo aos “ratos cinzentos” da Universidade. Um deles, um arabista baixinho e sempre vestido de fato cinzento, recusaria tempos mais tarde estender a mão a um perplexo Cláudio Torres.

Não vou ter a veleidade de, nos 6.000 caracteres de texto que me faltam, fazer uma história do Campo Arqueológico. Algo que não farei, nem agora, nem depois. Mas queria sublinhar o ar festivo, descoordenado, competente, financeiramente falido e politicamente comprometido que marcou essa primeira fase da casa. Os anos seguintes foram marcados por alterações significativas no rumo da casa. Surgiu a “Arqueologia Medieval”, à qual um arqueólogo muito crítico dos métodos aqui da casa vaticinava dois números de vida. Parece que já se fizeram mais alguns... Depois veio o Projeto Integrado de Mértola, que permitiu consolidar projetos e avançar na rede de espaços musealizados da vila. Fizeram-se teses, publicaram-se livros e acabou o charivari em torno da agitprop. Houve duas importantes exposições fora de portas, em Lisboa, em 1998; em Tânger, em 1999. Em 2001, terminava-se o Museu Islâmico, ao fim de 12 anos de trabalho. Mudaram-se a instalações para a Casa Amarela, no que foi o ganhar de uma autonomia própria, em termos de espaços. 

E aqui estamos, 40 anos depois do início, que no meu caso são 35. 

O Campo Arqueológico perdeu esse caráter de sítio único na arqueologia islâmica. Mil escavações floresceram. O reflexo dessa atividade está patente em iniciativas como a do CIGA, nos colóquios, nas publicações, nas teses de mestrado e de doutoramento, na inesperada duração da revista “Arqueologia Medieval”. E, ainda e sempre, nos pólos museológicos que se multiplicaram pelo sul do País. Nesse sentido, é claro que o Campo perdeu a “exclusividade” de outrora. Ainda bem que a perdeu. 

Outras coisas perdemos, e dessas tenho pena. O Campo Arqueológico deixou de ter, com a saída do Cláudio da universidade, uma certa centralidade que lhe era tão necessária. Primeiro facto e mais decisivo: as bateladas de jovens que aqui desembarcavam todos os anos constituiam uma permanente renovação. E um pretexto para um permanente debate e para uma formação que era feita no dia-a-dia. Sem a qual não estaríamos aqui, não é verdade? Uma das imagens mais impressivas que guardo é o do constante passar de gente por aquele dispensário. No meio de um ambiente barulhento e intimidatório (os tímidos, como confesso ser o meu caso, passam horrores nesse momentos), as conversas cruzavam-se. O Vitor Mestre estudava, já então, a arquitetura vernacular e a forma de a fazer perdurar e tornar eterna. A Cristiana Bastos andava pelos montes das serras algarvias. Percebia-se claramente, pelo fulgor da sua inteligência, que faria um percurso de exceção. O Carlos Pedro, uma das pessoas mais cultas que já conheci, andava em pesquisas pelos montes. Um dos seus trabalhos viria a ser arruinado por um roubo ocorrido na sociedade de um dos montes (nos Simões, creio). O pobre Carlos Pedro, que lá pernoitava e era alheio ao que se passava, veio de lá desmoralizado e sem vontade de continuar. Do Pavão já falei. Mais tarde viriam o António Cunha e, depois, José Manuel Rodrigues. A Isabel Magalhães e a Ângela Luzia foram os primeiros trunfos que o Cláudio tirou do baralho. Foram, os três, autores do livro “Mantas tradicionais do Baixo Alentejo”. Publicado em 1984 foi o primeiro trabalho que se editou. Nem cerâmica, nem museus, nem arqueologia. O testemunho de uma atividade popular em extinção ganhava protagonismo. Ainda bem que assim. Porque nesses pequenos gestos se marcou a diferença e o projeto se tornou diferente dos outros. Não estaríamos aqui sem a generosidade de tantos, mas tantos foram, ao longo de décadas. Levaria aqui o resto do dia, e já só me restam quatro minutos para terminar. Sendo certamente injusto, e deixando muita gente de fora, referirei ainda as figuras tutelares de António Borges Coelho, de José Mattoso e de José Luís de Matos. Que estão e estarão sempre na equipa. Posso também referir a generosidade solidária de amigos como Luís Bruno Soares. Como José Alberto Alegria. Como João Paulo Ramôa. Podia continua a recitar nomes: o João Simas, o Mané, a Mifas, o Rui Mateus, a Guisha, o Abdallah, a Rosa Barreto, a Nádia e a Rossana,o Beto e o Betão, o Laser e o Proveta, o Mário Pereira, o nosso José Carlos, o Fernando Branco, o Miguel Rodrigues, o Luís Filipe Oliveira,a Xinha, o Rui Santos, o Miguel Rego. E os de fora, Malpica, Acién, Rosselló, Zozayaetc. etc. etc. Não tenho a tarde toda, pois não?

Não vou nomear os que estão ligados, ainda hoje, ao projeto e que aqui vivem. Aqueles que, pessoalmente, me receberam no verão de 1991. Abro uma exceção: Manuel Passinhas da Palma, construtor de peças e de coisas. E inventor de soluções improváveis. 

Os que por aqui passavam, ainda que esporadicamente, foram o tecer de uma rede que ainda hoje se mantém. Anteontem, o Jorge Silva dava uma entrevista ao “Diário de Notícias” sobre o seu percurso gráfico. O Jorge, autor no nosso primeiro logo, não refere Mértola, mas ele está cá. Estará sempre. Como aqui estarão todos os outros de quem falei antes. Sempre e para sempre. A construção desse futuro já não passa por eles. Passa já pouco por nós. Passa muito pelos que vierem a seguir.

Termino com um texto de Fernando Pinto do Amaral.

Desceu tão de repente o sol por onde
andámos. Já não o vejo
essa janela para além das árvores,
esse lugar-refém 
de tudo o que senti. A própria infância
confundiu as imagens, quis amar
a voz do seu segredo. 
Se ainda existe o verão, porquê
a nostalgia, a dor feliz que foge e não
regressa? A cada instante parece outra
a melodia
nos olhos do meu pai do meu irmão
e eu sei adormecer, rezar ainda
com a minha mãe à cabeceira.

Quais são as cores da morte? Uma paisagem
acontecendo, em sombra, os objectos
esquecendo-se de nós - numa só vida
começam e acabam mais outras 
vidas.

Era uma casa cor-de-rosa e do meu quarto
Podia ver-se o mar. 

Sem comentários: