No outro dia, ao regressar da feira, um morcego cruzou-me por segundos o horizonte. Voltou para trás e desapareceu na escuridão da Horta do Prazeres. Lembro-me sempre dos morcegos no fim das noites da feira e da festa. Havia sempre morcegos no amanhecer dessas noites, uma revoada detrás do Café Ideal, quando se virava para a Rua do Burgueto. Mas já não existe o Café Ideal desses dias e a Rua do Burgueto mudou de nome. Mais morcegos haveriam de aparecer depois da passar a Latôa. Confiei sempre no sentido de orientação dos bichos, que picavam sobre mim, pairavam uns segundos e voltavam para trás, como se um elástico os puxasse. A minha irmã Júlia arrastava-me, por entre resmungos, ladeira da Salúquia acima. Desde então que as mulheres da família e eu não nos entendemos sobre os significado profundo das palavras "feira" e "festa".
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Era a melhor hora do dia, esse momento de abandono, em que a noite já não era noite e o dia ainda só espreitava. Quase toda a cidade desistira. Sobravam pequenos grupos de rapazolas como o nosso. Lembro-me que às vezes se hesitava "café do Tio Russo ou Mercado?" e a decisão era sempre ditada por secretos critérios, de difícil explicação mas que geravam sempre unanimidade. Pelo menos por parte dos que ainda conseguiam falar. Um café e um poejo, este último com fins supostamente medicinais mas que só vinha dar o toque de decadência final à noite.
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No outro dia, quando a noite já não era noite e o dia ainda só espreitava e o sábado da Festa estava a acabar, lembrei-me desses dias e dos momentos de abandono ao amanhecer.
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A Rua de Serpa estava deserta, a dos cafés também, no largo apenas se ouvia o rumor dos papéis que o vento levantava e depois ia pousar no mesmo sítio, exactamente no mesmo sítio. Lembro-me das gambiarras balouçando devagar na primeira aragem da manhã, as lâmpadas apagadas e já sem préstimo.
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Um velho poema de Manuel Bandeira veio em meu auxílio: "Quando ontem adormeci / Na noite de S. João / Havia alegria e rumor / Estrondos de bombas luzes de Bengala / Vozes cantigas e risos / Ao pé das fogueiras acesas // No meio da noite despertei / Não ouvi mais vozes nem risos / Apenas balões / Passavam errantes / Silenciosamente / Apenas de vez em quando / O ruído de um bonde / Cortava o silêncio / Como um túnel./ Onde estavam os que há pouco / Dançavam / Cantavam / E riam / Ao pé das fogueiras acesas ?". O poema segue, até ao fim de tudo, quando um dia a festa continuar e já tivermos partido há muito.
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Passaram pelo largo dois grupos de rapazolas. Trocaram piadas. Lembro-me que eram iguaizinhas às de há quase trinta anos. Resignado ao passar do tempo e já cansado, e sem ter a Júlia para me empurrar por entre resmungos, caminhei sozinho em direcção à Salúquia.
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Este texto foi publicado no jornal A Planície de 1.10.2005. Amarcord (1973) é um filme de recordações de Federico Fellini, um filme amado dentre os amados, uma pérola, como alguém já lhe chamou.
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Era a melhor hora do dia, esse momento de abandono, em que a noite já não era noite e o dia ainda só espreitava. Quase toda a cidade desistira. Sobravam pequenos grupos de rapazolas como o nosso. Lembro-me que às vezes se hesitava "café do Tio Russo ou Mercado?" e a decisão era sempre ditada por secretos critérios, de difícil explicação mas que geravam sempre unanimidade. Pelo menos por parte dos que ainda conseguiam falar. Um café e um poejo, este último com fins supostamente medicinais mas que só vinha dar o toque de decadência final à noite.
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No outro dia, quando a noite já não era noite e o dia ainda só espreitava e o sábado da Festa estava a acabar, lembrei-me desses dias e dos momentos de abandono ao amanhecer.
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A Rua de Serpa estava deserta, a dos cafés também, no largo apenas se ouvia o rumor dos papéis que o vento levantava e depois ia pousar no mesmo sítio, exactamente no mesmo sítio. Lembro-me das gambiarras balouçando devagar na primeira aragem da manhã, as lâmpadas apagadas e já sem préstimo.
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Um velho poema de Manuel Bandeira veio em meu auxílio: "Quando ontem adormeci / Na noite de S. João / Havia alegria e rumor / Estrondos de bombas luzes de Bengala / Vozes cantigas e risos / Ao pé das fogueiras acesas // No meio da noite despertei / Não ouvi mais vozes nem risos / Apenas balões / Passavam errantes / Silenciosamente / Apenas de vez em quando / O ruído de um bonde / Cortava o silêncio / Como um túnel./ Onde estavam os que há pouco / Dançavam / Cantavam / E riam / Ao pé das fogueiras acesas ?". O poema segue, até ao fim de tudo, quando um dia a festa continuar e já tivermos partido há muito.
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Passaram pelo largo dois grupos de rapazolas. Trocaram piadas. Lembro-me que eram iguaizinhas às de há quase trinta anos. Resignado ao passar do tempo e já cansado, e sem ter a Júlia para me empurrar por entre resmungos, caminhei sozinho em direcção à Salúquia.
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Este texto foi publicado no jornal A Planície de 1.10.2005. Amarcord (1973) é um filme de recordações de Federico Fellini, um filme amado dentre os amados, uma pérola, como alguém já lhe chamou.
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A feira começa amanhã - ver http://www.feirasdemoura.pt/
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