terça-feira, 4 de agosto de 2009

FRANCO & CICCIO

Chamava-se Pavilhão Mourense mas não era um pavilhão. Era ao ar livre e ficava na Rua do Fojo. Nos meses de Verão havia cinema. No resto do ano não havia nada. Um baile às vezes, um espectáculo musical quase nunca. O pavilhão que não era pavilhão estava dividido em três áreas: o geral, mais atrás, bancos corridos em cimento; as cadeiras a meio, arrumadas em meia dúzia de filas; as mesas, mais perto do ecrã, com quatro cadeiras por cada mesa. Povo atrás, um pouco menos povo mais à frente. A luta de classes em forma de mobiliário.
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Pedir uma mesa era um jogo de batalha naval: “dá-me o E4. já não há? então o F5”. E lá íamos. O meu tirocínio foi o Patton e serviu para aprender a rir à Patton, com a boca assim à malandro e durante meses fui um bocadinho o gajo, a rir à malandro e a desafiar aqueles nazis todos. O cartaz era sempre o rebotalho da Lusomundo. Filmes velhos e riscados, cheios de mazelas e de cortes. Como o Catlow, uma fita de cóbois assim para o bera, que se partiu 14 vezes; aquelas coisas do blaxploitation, com a Pam Grier em pelo, quando ainda tinha idade para isso; filmes de terror e de capa e espada sem nome nem memória. Mas que voltaria a ver mil vezes só pelo prazer de tornar aquele pavilhão que não era pavilhão.
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Tenho um lugar especial no meu coração para os nomes de Franco Franchi (1922-1992) e de Ciccio Ingrassia (1922-2003). Eram bons? Nem por isso. Eram às vezes maus, às vezes muito maus. Faziam comédias ou algo semelhante. As piadas eram velhas e batidas. Franco torcia-se em caretas e momices. Especialista em trocadilhos evidentes, com sotaque siciliano, era o tretas do duo. Ciccio parecia mais sério mas não muito. Alto e desengonçado, passava por ser a consciência moral dos dois. As facécias de Franco e Ciccio metiam paródias aos filmes do oeste, aos policiais e aos peplos. Ou ao sexo, como naquele Último tango em Zagarol, em que o título era muito melhor que o filme. Nós riamos. Muito.
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Os anos passaram e já não há pavilhão. Restará um dia a memória do som. Daquele inigualável som das colunas roufenhas que ecoavam rua fora, até ao arco do visconde. Às vezes o eco era pacífico. Às vezes nem por isso. Como no dia em que passou O êxtase sexual de Macumba e fomos todos, o Rafael, o Chocolate, o Galego, o Tarugo e Companhia, fingindo idade adulta. Era impossível não ouvir o filme e eu imaginava o que pensaria a vizinhança. O que diria a vizinhança daquela desvergonha.
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No dia seguinte voltou tudo ao normal. Regressaram, em todo o seu esplendor, Franco e Ciccio, Os dois magos da bola, Os dois filhos de Trinitá e Satiricosissimo, o péssimo Mariano Laurenti e o se calhar ainda pior Osvaldo Civirani. Deve ser da idade, mas, aqui entre nós, agora mesmo não os trocava por nada deste mundo, nem mesmo pela juba (e o resto) da Pam Grier ou pelos outros filmes que íamos ver, fingindo idade adulta e que enchiam os ouvidos da vizinhança de som, de fúria e de desvergonha.
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Crónica publica no jornal A Planície em 1.10.2008

Franco Franchi e Ciccio Ingrassia numa pose típica

Pam Grier (n. 1949) vários séculos antes de ter protagonizado Jackie Brown

3 comentários:

Unknown disse...

No princípio dos anos 60, quando por aí andei, foi o tempo das grandes fitas chamadas bíblicas do lendário Cecil B.deMille.
Lá vi Os Dez Mandamentos, o Ben-Hur, o Rei dos Reis, etc., com o Charlton Heston a comandar a grupo dos galãs da altura.
Naqueles tempos, ir ao cinema ao pavilhão era um acontecimento que dava direito a arranjos especiais da tal batalha naval.
Sim porque era coisa demasiado importante quem é que ficava na E4 ou na E2, para ser deixada ao acaso!
Abraço, obrigada por estas memórias.
MEG

oasis dossonhos disse...

Caro Amigo

Estas memórias remetem-me para o meu "Éden Piolho", um cineminha de bairro ali em Alcântara, onde deliciado vi filmes do outro mundo que não recordo, enquanto sons e cheiros se misturavam.Creio até que houve quem tivesse mijado do balcão para a plateia, ou estarei a fazer uma evocação consciente do Domingos Machado ("O Que Diz Molero,lembram-se?)
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Há anos em Jerba, na cidadezinha -capital da ilha tunisina, onde Ulisses viu sereias, senti um "frisson" ao entrar no escuro de uma espécie de cinema Paraíso, nas traseiras da igreja de S. José, fechada aquando da independência, reaberta neste novo milénio.
A poalha no ar, enquanto a película de terceiríssima categoria se desenrolava, lembrou-me a adolescência.
A mesma ambiência.
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Por essa época perdi o ano escolar - andava no 4º ano do curso comercial e era ministro da educação Veiga Simão, a quem recorri, sem resposta - pois soube, num sábado à tarde após mais uma dose de dois filmes, à saída do Éden, que o exame da segunda época, de Cálculo Comercial, tinha sido nessa manhã...
O aviso surgira, "à queima roupa", na tarde da véspera (sexta feira).
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Nunca gostei de Matemática (o odioso professor que tive de gramar, que dava uma aula de matéria no início de cada mês e depois fazia sucessivas sessões de revisão da matéria dada, criou terrores de filme)e o incidente fílmico adensou ainda mais o asco, repartido em partes iguais pela matéria e pelo "barrote queimado", alcunha que a criatura tinha...mas isso dava matéria para um filme, talvez de animação.
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A infelicidade que este episódio me trouxe, foi ter de repetir todas as cadeiras, dado que esse chumbo marcou-me para sempre, pois tive de suportar uma turma de repetentes, que soltavam pássaros nas aulas, abriam malas de viagem encontradas no lixo e diziam palavrões às professoras mais frágeis e a um professor que pelos seus ademanes parecia ser homossexual, fazendo lembrar a malta de "To Sir With Love", com um Sidney Poitier mais baixo e anafado e a anos luz de distância do actor, a nível de simpatia.
Lamentavelmente, não havia Lulu, pois nesse tempo as raparigas e os rapazes nas escolas fascistas não se misturavam, não havia turmas mistas.
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O cinema de Odeceixe também teve uma estória que merece ser contada. Um dia a mãe do Cláudio (que é hoje o afável proprietário da Residencial do Parque)meteu-o na camioneta da carreira e o puto saiu do seu monte alentejano e foi conhecer o pai naquele começo do Algarve, onde o Alentejo ainda se espreguiça.
Ficou a ajudá-lo a passar filmes, como no filme do velho Alfredo (Philipe Noiret, que também foi o poeta chileno no Carteiro de Pablo Neruda)
Trauteio a música lindíssima deste filme e revejo mentalmente a sequência final dos beijos censurados, constatando o quanto existe de cinema nas nossas vidas de cidadãos destes prodigiosos séculos.
Abraço
Luís

Unknown disse...

gostava que me ajudassem , como posso adquirir os dvd ou endereços para fazer downloads
obrigado
joão