Foi com surpresa que reconheci, nas notícias, a janela do seu
gabinete. As imagens eram confusas, mas a legenda que passava em baixo, na
notícia do telejornal, com a notícia do massacre no Museu do Bardo, não
deixava margem para dúvidas.
Há já algum tempo que não falamos pessoalmente. Talvez seja
agora o momento para retomar o contacto. Desde 2009 ou 2010 que várias ideias
ficaram em suspenso. Durante a reunião, aí no Bardo, fizemos a habitual troca
de livros: entreguei-lhe a minha tese, você ofereceu-me a monografia sobre a
igreja de Hergla. Tomou por amabilidade minha a afirmação de que o seu estudo
me fora decisivo. Foi mesmo, por causa das representações em dois mosaicos, que
você estudou, e que me forneceram várias pistas na minha própria investigação.
O seu museu é um dos mais belos do mundo. Isso você sabe
perfeitamente. Ao saber do horror do massacre, e sem me ocupar agora das raízes
de tanta tragédia, ocorre-me o começo de um poema de Konstandinos Kavafis, datado de 1904:
“O que
esperamos na ágora reunidos?
É que os
bárbaros chegam hoje.
Por que tanta
apatia no senado?
Os senadores
não legislam mais?
É que os
bárbaros chegam hoje.
Que leis hão
de fazer os senadores?
Os bárbaros
que chegam as farão.
(…)”
O poema de Kavafis termina
num tom de resignação, quase com o desejo que os bárbaros permanecessem… Os
riscos de hoje são esses mesmos, os da resignação e da capitulação, quando os
sítios da cultura são aqueles que mais sofrem com os novos bárbaros. Tenho
pequenos exemplos domésticos para lhe contar. Que vão da escala nacional a
penosas barbaridades locais. Uma certa classe política detesta património e
museus. Falámos disso, tal como falei desse tema, há uns bons anos, com o seu
colega Fathi Bejaoui.
Voltarei, um dia destes, ao
Bardo. Até porque não conheço a nova ala. Farei, como nas vezes anteriores, o
percurso de que mais gosto: de Habib Thameur até ao museu, no metro de
superfície, no meio da juventude local. Voltarei à frescura e à luz acolhedora
das salas, ao branco das paredes e ao azul dos lambris. A coleção é sobretudo
pré-islâmica, e as principais peças são romanas e cristãs. Nunca deixarei de me
deter, longamente, ante o batistério de Kelibia, uma das mais belas peças de
Arte que conheço. Ou em frente do Triunfo de Neptuno, trazido de Chebba, na
altura em que essas coisas se faziam assim. E como tenho a mania dos detalhes
nas obras de arte, voltarei a olhar a Ecclesia Mater, a de Tabarka.
Não lhes perdoaremos nem
deixaremos de os combater. O ataque ao Bardo, e a horrível chacina de gente
inocente, foi um ataque a todos nós. Aos que amam o Património e os Museus,
decerto. Mas sobretudo aos que amam a tolerância, o Mediterrâneo e, se me
permite que o diga, a nossa Tunísia.
Com amizade
Santiago Macias
(mail enviado ao meu amigo
Taher Ghalia, diretor de um museu agora celebrizado pelas razões erradas)
Crónica publicada hoje em "A Planície" - a imagem reproduz o batistério de Kélibia (segunda metade do século VI)
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