quinta-feira, 28 de outubro de 2010

UM APÓLOGO

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
.

Lembrei-me hoje deste texto do grande Machado de Assis (refiro-me ao escritor, falecido em 1908, a quem Pedro Santana Lopes, então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, enviou um cartão , agradecendo-lhe um livro que chegara ao seu gabinete na autarquia). Estava no meu livro de leitura da 4ª classe e nunca mais o esqueci. Vale, às vezes, irmos buscar estas coisas da arca da nossa memória. Todos estes textos nos ensinam sempre qualquer coisa.

4 comentários:

Anónimo disse...

Não deixa de ser um apólogo interessante, que nos pode levar a inúmeras reflexões:
O trabalho teria sido concluído apenas com uma delas?
A importância de cada uma delas no resultado final é mensurável?
O objectivo do esforço conjunto era outro que não o propósito declarado?
E a questão fundamental. ..Será que a agulha estava, realmente, interessada em ir ao baile?
O alfinete parece não ter vontade própria e ficamos sem saber se o professor melancólico abria caminhos por convicção ou por indução.
Não teremos todos, a dado momento, um pouco de agulha, alfinete, novelo de linha ou professor melancólico?
Há quem afirme que o homem é quem é, mais a sua circunstância.

Santiago Macias disse...

Um comentário interessante, como o texto, e muito inteligente, embora pouco anónimo.
Creio que sabes algumas das respostas. Eu também. Mas não as sei todas.

O Informador do Outeiro disse...

Pois para mim o mais interessante acaba por ser o agradecimento do PSL ao falecido escritor!!!

Anónimo disse...

Informador de um Outeiro que eu cá sei, a probabilidade da asneira é maior quando se contratam Santanetes e se assina de cruz.