segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

Foi um choque difícil de explicar. O homem já meio grisalho que saía pesadamente do armazém era o mesmo puto de quem me despedira há 17 ou 18 anos dizendo descuidadamente "ligo-te prá semana, ou então liga-me tu". Nenhum de nós ligou. Até há duas semanas.
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A vida do Jorge tornou-se igual a tantas outras vidas de subúrbio. Levantar às 6, sair de casa às 7, chegar a Setúbal às 8, trabalhar 12 horas ("neste ramo é assim, se mudar fico igual ou pior"), voltar às 10, passar pela casa dos pais, que estão velhotes, deitar à meia-noite. Um ano após outro, desde há muitos, muitos anos. "Chego a casa rebentado, nem há pachorra para os miúdos. Ao domingo não me apetece nada nem ir a lado nenhum".
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Ao menos no ramo em que trabalhas viaja-se, atirei eu. "Nem penses, cada vez tenho menos vontade de sair de Portugal. Nas últimas duas vezes fui detido pelas polícias de fronteira. Em Londres e em Hamburgo". O cruzamento de sangue africano e europeu deram ao Jorge um ar estranho às latitudes nórdicas. "Confundem-me sempre com um árabe. Perguntam se sou do Egipto ou do Iraque. Depois chateiam. Não volto a sair".
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A gargalha estridente de outros tempos - que divertiam a Teresa, com quem casou e com quem vive até hoje - deu lugar a um sorriso um pouco sombrio. Talvez seja difícil escapar a um sorriso sombrio quase se passam, entre Queluz e Setúbal, 124 quilómetros, um dia após outro, de segunda a sábado. Um mês a seguir a outro mês, um ano atrás de outro ano.
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Não falámos, desta vez, dos discos. O Jorge tinha uma colecção notável. Salsa, reggae, ska, merengue, samba, mornas, coladeras, funanás, zouk, os sons do Congo, mais os da Angola natal. Ouvíamos isso tudo de enfiada, entremeado pelas cervejas que emborcávamos, com método e rigor, no Burladero, o bar do rés-do-chão lá do prédio. Ainda guardámos espaço para uma discordância em torno de boleros como Dos gardenias ou Esperame en el cielo, que o Jorge ouvia com um encolher de ombros e que eu amava profundamente.
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"Telefona quando voltares a Lisboa. Almoçamos lá em casa os quatro mais os miúdos. Assim de certeza que não temos sossego". Por uma vez riu-se como há muitos anos. Entrou de novo no armazém e voltou ao trabalho. Hora após hora, papéis e mais papéis, um dia e outro, um mês e outro, sempre sem parar.
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Fiquei sozinho e em silêncio no meio do parque de estacionamento do armazém, tentando recuperar a memória de um Jorge que tinha desaparecido. Em tempos tínhamos combinado que iríamos passar férias a Cabo Verde, talvez a S. Vicente, e beberíamos grogue num qualquer boteco da Avenida Marginal do Mindelo. Talvez sim, um dia destes, se não nos pusermos à espera que o tempo passe e que corram mais 17 ou 18 anos, até que o tempo tome de vez conta de nós.
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Os murais que Diego Rivera (1886-1957) pintou no início da década de 30 para a indústria automóvel de Detroit (estão hoje no Detroit Institute of Arts) expressam bem a ideia do homem-máquina. O texto que acima publiquei foi originalmente editado em A Planície (15.2.2006).

2 comentários:

Anónimo disse...

E agora? O que dizer depois de ler isto?

L.A.

Dulcineia disse...

O link que aqui deixo para ser visto tem mais a ver com o post "Patrimonio e Turismo" publicado no dia 03 de Dezembro. Mas mais vale tarde do que nunca...

Talvez gostasse o sr. do PS que proferiu a frase SUPER INTELIGENTE que Moura chegasse a este estado.

http://carmoeatrindade.blogspot.com/2009/12/retrato-de-um-portugal-em-ruinas.html