sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O OUTRO LADO DO SUL

Todos os dias, quando subo para o meu gabinete, na torre I do Panteão Nacional, abro a janela e olho para o outro lado do rio. Trabalhar de portas abertas é um velho hábito, trazido dos tempos em que estava na Câmara de Moura. Ao fundo, para lá da margem esquerda do Tejo, está o requebro do Castelo de Palmela. Vê-se com toda a nitidez, a 25 quilómetros de distância. Para lá do castelo, 159 quilómetros a sudeste, está a minha casa na Salúquia. É para lá que olho, mesmo sem a ver, é lá que estou, mesmo quando me sento à secretária e começo a trabalhar.

            Do outro lado do Tejo está o outro lado do sul. Esse outro lado do sul chama-se Alentejo. Aquele que é o meu, aquele onde nasci e para onde um dia regressarei. Há coisas que o Alentejo tem e que não encontro em mais lado nenhum. O Alentejo são as romarias na primavera, e as procissões ao longo do campo. Os textos da antiga Grécia descrevem procissões assim. São tão antigas como este mundo do sul onde vivemos. O Alentejo é a vinha e o vinho, a oliveira e as azeitonas e o azeite, e a figueira. O sul é a cal e o branco mais intenso que existe. E um céu azul, que assim tão azul só encontramos no Alentejo, na Andaluzia ou no Peloponeso. O Alentejo é a terra das festas vibrantes, “tierra ensangrentada en tardes de toros”, que Agustín Lara (que era mexicano...) imortalizou. O Alentejo são os nervos à flor da pele. É um território de sentimentos fortes: amor, paixão, amizade, ódio, vingança. É a paixão dos fortes feita gente. É um mundo antigo, feito de gente firme e digna.

            O Alentejo é o som das vozes e do cante. Há 25 anos, andando ao longo da muralha, em Mértola, ouvi, 20 metros mais abaixo, alguém que cantava no rio uma moda de extraordinária beleza. Era uma daquelas vozes melancólicas e cheia de uns trinados que vão sendo cada vez mais raros. A voz do pescador enchia o anfiteatro natural que Mértola é, para meu encanto e para espanto de um grupo de turistas alemães que assistia, fascinado, àquela exibição. A voz daquele pescador representava o que vai resistindo de uma cultura milenar. Há muitas centenas de anos que as margens do Guadiana, e os esplendorosos cerros à sua volta, ouvem pescadores cantar a mesma musicalidade, dita umas vezes em latim, outras em árabe, outras enfim em português. O pescador já não está entre nós e não voltarei a ouvir ninguém cantar daquela maneira. Mas o episódio dessa manhã ficou-me bem gravado. O sul é, para mim, também essa memória de pessoas, de sítios, de sons, de cores e de pequenas histórias. E cada um de nós tem o seu Alentejo, cheio de recordações e de episódios. Não é uma anedota nem a caricatura que dele quis fazer, desgraçadamente, Henrique Raposo.

            Amanhã de manhã, repetirei o ritual de todos os dias. Entrarei pela porta lateral, cruzarei o coro baixo e entrarei no meu gabinete. Abrirei a janela de par em par e olharei para o castelo de Palmela, lá longe. E pensarei, como sempre, “está ali o outro lado do sul”.

            O Alentejo, no outro lado do rio, é a minha casa. É a nossa casa. É uma casa enorme, onde está sempre a minha gente e a minha família. Foi o local da partida e será o local de regresso. Isso eu sei, mesmo que não saiba explicar.

Crónica hoje, em "A Planície"

E antes que venham com minhoquices: nem o horizente está torto, nem a imagem está partida a meio...


4 comentários:

Anónimo disse...

Alentejo sim é tudo isso.No alentejo as horas são mais compridas.É uma região onde mal se entra o tempo parece outro.São as tardes de um tempo longo junto ao Guadiana a ouvir o correr do rio até ao anoitecer.

Anónimo disse...

Foi também o meu local de partida, não sei se será o meu local de regresso , quando todas as luas , passarem...retenho cada canto, cada rua, e, aquele largo da Latoa, onde jogávamos à bola, com o Joli a servir de guarda redes?E...E tudo que fica tatuado no coração? O Tempo o dirá, mas ninguém me espera ...todos já partiram...

Anónimo disse...

Que lindo texto!Sim o Alentejo é tudo isso...

Anónimo disse...

E de repente um breve texto sobre o pensar o Alentejo à distância e prever o regresso a essa zona do país suscitou comentários interessantes.Todos eles a revelarem de algum modo as origens alentejanas e o sentir daquela terra e das suas gentes;é algo que o decurso do tempo e o afastamento físico nem sempre conseguem eliminar.Fica sempre um lastro permanente de um sul profundo,que se fecha sobre o viajante,mal passa o Guadiana,dantes pela velha ponte ferroviária,hoje pelas múltiplas pontes sendo a da barragem do Alqueva a que mais impressiona.Para alguns ali já começa um novo mar e novas esperanças.