Crónica para mourenses com mais de 50 anos.
Já só restam dois do grupo dos caveiras, “ativo” na vila e
arredores entre as décadas de 60 e de 90 do século XX. Eram comerciantes e
funcionários públicos. Jovens e inventivos, dados à farra e capazes das criações
mais disparatadas. Quando me lembro deles, fico com a vaga sensação de estar
ante a recordação de um filme italiano. Qualquer coisa de Mario Monicelli,
Pietro Germi, Dino Risi… Filmes que eles, aliás, conheciam lindamente, das
sessões do velho Cineteatro caridade.
O nome “caveiras” tinha raiz na localidade do concelho de
Grândola. Com regularidade de metrónomo, o grupo por lá passava a caminho da
Luz ou de Alvalade, ou em digressão borguística, sem fim definido. De Canal
Caveira vinham com a recordação do bom vinho que por lá se bebia. O que era
motivo mais que suficiente para atazanarem o juízo ao sr. João Filipe,
proprietário do desaparecido Café Portugal.
O Café Portugal ficava na esquina da Rua dos Espingardeiros com a
Rua da Assaboeira (onde agora está a esquina do “Clarabóia”). Tinha duas
entradas, a principal pela Rua dos Espingardeiros, a lateral, que tinha dois
degraus, pela outra rua. Detrás do balcão, o sr. João, que recordo como homem
muito tranquilo, regia o sítio, com grande bonomia. As provocações com a
qualidade do vinho servido no café eram constantes (que era uma zurrapa, que
parecia pomada e mais isto e mais aquilo; vinho bom? só em Canal Caveira!). E
tiveram um retorno. Cada vez que o grupo entrava (o “cada vez” era
quotidianamente, esclareça-se), o sr. João Filipe disparava “atenção, que aí
vêm os da caveira”. O nome pegou de estaca. Passaram a ser os Caveiras, com
direito a número e tudo (o meu pai era o número 5).
As invenções eram múltiplas e não entrarei em detalhes. Recordei,
há dias, no meu blogue, uma incursão a Huelva em que ocuparam o camarote VIP do
estádio do Recreativo. Poderia explicar, entre muitas outras, como fizeram uma
caçada noturna aos pássaros no forro da cadeia comarcã – provocando o pânico
nos presos, que julgaram ter o edifício sido tomado por seres sobrenaturais –
ou como se infiltraram num baile numa freguesia fazendo passar um deles pelo
novo juiz de Moura. Ou como ajudaram um deles, num momento de aflição (“fulano
de tal é belfo de tripa”, justificavam os outros), nas margens do Tejo. Um
episódio escatológico, digno de Luigi Comencini. As histórias foram mais que
muitas. Fizeram-me rir desalmadamente na minha juventude. Ainda hoje fazem.
Tenho saudades do Café Portugal, que deixou de existir quando
comecei a ter idade para lá entrar sozinho. Tenho saudades do sr. João Filipe.
E, bem entendido, tenho imensas saudades dos “caveiras”. Com quem comecei a
aprender um certo sentido lúdico da vida.
Crónica publicada hoje, em "A Planície"