O
livro (Histoire des Almohades, de Abd
al-Wahid al-Marrakushi, escrito em 1227 e publicado em Argel, em 1893) não
existia em Portugal. Recordo-me de o ter consultado, em 2003 ou 2004, na
Biblioteca do INALCO (Institut National des Langues et Civilisations
Orientales), em Paris. Tenho na memória uma sala de leitura “à antiga” (pouca
luz, muitos móveis em madeira, catálogo manual...), onde gastei, com prazer,
largos dias. O livro não acrescentava nada de excecional à informação que já
tinha sobre o sul de Portugal. Estaquei, contudo, atónito, nesta colorida
passagem, relatada pelo poeta Ibn Habous:
“Cheguei um dia a
Silves, depois de ter estado três dias sem comer. Perguntei a quem me poderia
dirigir naquele local e um habitante indicou-me Ibn al-Milh. Fui então à
oficina de um encadernador que, a meu pedido, me deu uma pele muito fina e um
tinteiro, e escrevi versos em louvor daquele de quem me tinham dito o nome; fui
depois a sua casa. Encontrei-o no vestíbulo e ele respondeu de forma muito
graciosa à minha saudação, acolhendo-me da forma mais amável: "suponho,
disse-me, que és estrangeiro". Assim é, respondi. "E a que classe de
homens pertences?". Sou, respondi, um literato, um poeta, quero dizer, e
pus-me a recitar os versos que tinha acabado de escrever. Ouviu-os muito bem,
convidou-me a entrar e, fazendo que me servissem de que comer, conversou comigo
com uma amabilidade que nunca tinha visto. Quando pedi licença para me ir
embora, saiu e voltou a entrar, seguido por dois criados que traziam um cofre,
que fez pousar à minha frente. Abriu-o e tirou de dentro 700 dinares
almorávidas, que me deu. "Toma o que é teu", disse-me, entregando-me
mais uma bolsa contendo 40 meticais, "isto é mais uma prenda minha".
Surpreendido com as suas palavras, que eram para mim um verdadeiro enigma,
perguntei de onde vinha "o que era meu". "Fica
a saber, respondeu, que pus de parte uma das minhas propriedades, cuja
receita anual é de 100 dinares, que destino a poetas. Acontece que nenhum me
procurou, nos últimos sete anos, devido aos problemas que assolam o território,
e foi assim que se acumulou a soma que te é entregue. Quanto aos 40 meticais,
são dos meus rendimentos pessoais".
A data de nascimento
de Ibn al-Milh é incerta, admitindo-se que possa ter ocorrido por volta de
1030. Sabe-se que morreu em 1107. A referência aos “dinares almorávidas”
ajuda-nos a enquadrar este episódio nos finais do século XI, porque é a altura
em que essas cunhagens começam. Os últimos 15 anos do século foram marcados por
grandes convulsões. O emir almorávida Yusuf b. Tashfin derrotou os cristãos em
Zalaca, em 1086, e assumiu depois posições de maior força. O príncipe sevilhano
al-Mutâmide, o homem mais poderoso do sul, acabou deposto pelos almorávidas, e
exilado, em 1090. Ou seja, a acalmia sugerida pelo texto deverá ter ocorrido na
última década do século, e depois de restabelecida a paz nos territórios meridionais.
O curioso neste texto
é que há uma espécie de um 3-em-1. Por um lado, a concessão de uma bolsa
literária, depois a existência de um poeta-mecenas. Depois ainda, a ideia de um
“jackpot”. Ou seja, de um prémio acumulado, que foi entregue a um afortunado
Ibn Habous.
Quanto valeu o
“jackpot”? É só fazer contas. 700 dinares (3,85 g., cada) equivalem a cerca de
2,5 kg. de ouro. Nada menos de 150.000 euros em moeda atual. 21.400 euros de
bolsa literária por ano? Rico mecenas, o nosso Ibn al-Milh...
Crónica em "A Planície". Pintura orientalista de Ludwig Deustsch.