Texto lido na homenagem a Cláudio Torres, no sábado:
Quando as escavações arqueológicas arrancaram, em 1978, quem viesse de Lisboa para Mértola contava com longas horas de viagem. A autoestrada acabava em Casal do Marco. Não havia computadores pessoais. Bem entendido, os telemóveis eram objetos de ficção científica. Mértola era um sítio longínquo, perdido nos confins do Alentejo. Vinha-se, portanto, para Mértola. Com esforço e por estradas que são hoje secundárias. Em 1978, arrancavam escavações arqueológicas à procura desses árabes nossos supostos antepassados. Quem financiava este projeto era a Câmara de Mértola. Pontualmente, a Secretaria de Estado da Cultura, concedia apoios às escavações. Mas este era um projeto do Poder Local. Em grande medida, ainda o é.
Recordo, e vale a pena recordar isto, que não havia ainda Lei das Finanças Locais e que grande parte do que nas autarquias se fazia não tinha enquadramento legal bem definido. Em concreto, as iniciativas culturais promovidas pelos municípios eram, para alguns, de legalidade duvidosa. Muitas vozes se levantavam contra estas iniciativas. A Cultura nas autarquias era uma novidade, que nascia do 25 de abril. Ou seja, o projeto das escavações arqueológicas aqui em Mértola arrancava por entre dificuldades e aos solavancos. Empurrado pelo entusiasmo e pelo poder de decisão de um jovem autarca, António Serrão Martins, e de um também jovem professor universitário, chamado Cláudio Torres. Por detrás, estava a figura tutelar de António Borges Coelho.
A partir daí começa a sonhar-se o futuro. O primeiro texto que o Cláudio escreve, e onde desenha o que virá a ser esse futuro, intitula-se “Mértola, o castelo, arqueologia e sonhos”. Isso foi em 1979. Anos mais tarde, em 1991, e quando ganha o Prémio Pessoa, o “Expresso” chama para título da entrevista uma frase sua “prefiro os mitos à realidade”. De facto, foi o sonho que guiou este percurso. O futuro nunca se desenharia se se tivesse recorrido a folhas excel, a gráficos, a indicadores de impacto ou de realização, às ponderações, às metas e aos valores críticos. O que aconteceu durante os primeiros anos, grosso modo entre 1978 e 1993, decorreu sob o signo da improbabilidade. Hoje, passados tantos anos, tudo parece lógico que tivesse acontecido. Esteve muito longe de assim ser. A quase unanimidade em torno do projeto, mesmo em Mértola, não foi sempre assim. Houve momentos de grande dificuldade. Há pouco mais de 20 anos andaram os membros da equipa distribuindo papéis, de café em café, para explicar que a Câmara apenas iria pagar cerca de 7,5% do custo do Museu Islâmico. Sem ressentimento o digo. Todo esse processo foi uma grande aprendizagem, para todos nós. Hoje, Cláudio, o teu trabalho merece aplauso, urbi et orbi. Ainda bem que assim é. Embora tivesse dado jeito que esse reconhecimento tivesse chegado um pouco mais cedo.
Não quero fazer desta intervenção só um elogio, de ti, do teu trabalho, da tua tenacidade, do teu entusiasmo, do teu jeito de ver as coisas pelo ângulo inverso. Mas é claro que tudo o que disser parte desse reconhecimento. Que é o meu e que é o de todos nós. Uma placa num muro tem sempre um significado. Predisse-te um dia, há muitos anos, que um dia haveria em Mértola uma Rua Cláudio Torres. Enganei-me, felizmente. O nome no museu é muito mais justo, e sem ti ele não existiria.
Não vou aqui evocar recordações pessoais de um percurso que tivemos e onde se incluem episódios pícaros (que não reproduzirei), livros como “O legado islâmico em Portugal”, exposições em Portugal (Portugal Islâmico, em 1998), em Marrocos (Marrocos-Portugal: portas do Mediterrâneo, em 1998) e no Brasil (Lusa – a matriz portuguesa, em 2007), o arranque da revista “Arqueologia Medieval”, núcleos museológicos ou o projeto Discover Islamic Art. O único e decisivo testemunho pessoal que te posso deixar é que o modo como desempenhei o cargo de presidente da câmara, o modo como dirijo o Panteão Nacional ou como dou aulas na NOVA são devedores do que contigo aprendi ao longo de mais de duas décadas. Na verdade desde o já distante ano letivo de 1982/83. Espero ter estado/estar à altura dos ensinamentos.
Quem construiu Tebas, a das sete portas?, perguntava há dias, citando Brecht, a nossa amiga Paula Amendoeira. Para depois aludir, claro, a ti e ao projeto de Mértola. O que se passou na vila depois de 1978 não seria possível sem o 25 de abril nem sem aquele período que passa agora para a História como o PREC (Processo Revolucionário em Curso). Foi nessa matriz um pouco desordenada que os tais sonhos eram possíveis, que tudo era possível e que as coisas tomaram forma. Este projeto é o de um Portugal Livre, não de outra coisa qualquer.
Apresenta-se, hoje menos do que há uns anos, Mértola como um modelo. Não é tal, nunca foi tal. O trabalho aqui desenvolvido resulta de um conjunto de circunstâncias, políticas, culturais e sociais daquele tempo. O projeto não seria possível deste modo em qualquer outro sítio. Nem seria possível iniciá-lo daquele modo, naturalmente, na Mértola de hoje.
O projeto é uma vitória? É uma vitória por vezes avassaladora. Um terramoto do qual és o epicentro. Com réplicas em muitos sítios. Mas não mudou, por muito que isso nos custe, questões de fundo. O despovoamento continua, o envelhecimento acentua-se. Não há, tecnicamente, falando, um interior. Mas há esquecimento. E em relação a isso, um projeto de desenvolvimento cultural pode ser, e é, um símbolo, mas não resolve, não resolveu, o resto.
O que é o resto? É passar de 700.000 habitantes no Alentejo em 1950 para 400.000 em 2021. Na prática, cabemos hoje dentro do concelho de Sintra. A isto chegámos. Em Mértola, criaste, sem dúvida, uma grande diferença. Mas ainda (sublinho ainda) não ganhámos o tal futuro que sonhaste, que sonhámos, que todos queríamos e queremos.
O que não queremos? Algumas imagens que, por vezes nos querem colar. O Alentejo não é o exotismo ao virar da esquina, com indígenas que cantam bem, que fazem bom artesanato, bom pão, bom vinho, bom azeite e que, felizmente e em nome dos bons costumes, abandonaram as práticas canibais há cerca de 2000 anos. Nós não queremos ser esse exótico baratinho. O que nós queremos, e temos direito, é a uma vida decente e a um Alentejo melhor. E desse caminho de conquista faz parte integrante o projeto de Mértola. Pelo que foi e que ainda se espera que possa vir a ser.
O que nos interessa é o futuro. Não há soluções infalíveis nem caminhos milagrosos. Mas há coisas que sempre estiveram na matriz deste projeto. O quê? A componente de investigação, bem entendido. As publicações. Os seminários e os colóquios, claro. Mas também as iniciativas improváveis e fora da caixa. A recusa da banalização e do costumeiro. “Temos de inventar qualquer coisa, que isto está a ficar muito sossegado”, dizia o Cláudio com frequência. Depois, seguiam-se semanas de frenética agitação, enquanto qualquer coisa tomava forma.
Foi um percurso pouco ortodoxo. Só em 1991 se publicou o primeiro catálogo de um núcleo museológico, só em 2004 e em 2005 surgiram as primeiras teses de doutoramento. Que a primeira publicação saída deste projeto tenha sido o resultado de uma recolha sobre mantas tradicionais, e não sobre arqueologia, diz muito do que é o génio do lugar. Nesses anos de arranque, duros e complexos, as opções foram outras: recuperar imagens religiosas, participar na reabilitação de edifícios, como aconteceu no museu romano, ou fazer de uma basílica cristã um ponto obrigatório de visita. Tudo isso foram gestos de cidadania e de compromisso que nos fizeram pensar a História, o Património do ponto de vista próximo das pessoas. Destas e não das da Academia ou dos tapetes fofos dos ministérios. Fazendo da Arqueologia um elemento da vida de todos nós. E não me digam que mitizo o passado ou que exagero. Eu estava cá. Foram 14 anos da minha vida vividos assim, dia a dia. Ainda aqui estou, aliás.
A nossa grande aprendizagem passou pelo contacto com uma realidade social que desconhecíamos, e pelo contraste entre as expetativas do jovens universitários versus as expetativas dos jovens que vinham dos montes. Essa pedagogia política, essa aprendizagem da vida era aquilo que o Cláudio tinha como crucial neste projeto. E é claro que tinha razão.
O essencial agora é o futuro. Não há receitas, porque nunca as houve e hoje não é, seguramente, a ocasião para essas reflexões. Sobretudo, porque o futuro não passa pela burocratização, pelo óbvio ou pela repetição de receitas. Pelo fazer uma vez e outra e outra as mesmas coisas. Repetindo iniciativas, uma vez e outra. De um colega nosso, tecnicamente bem preparado, mas que nunca produziu nada que se visse, comentava-me uma vez o Cláudio: “não tem imaginação; e sem imaginação não se escreve História nem se faz Arqueologia”. Recordo aqui uma passagem do filme “Amici miei” de Mario Monicelli. Um personagem interroga-se “o que é o génio? Para depois responder: é fantasia, é intuição, é decisão e velocidade de execução”. Podia ter sido o Cláudio a dizer isso. Porque o padrão dele sempre foi esse. Oxalá tenhamos, no Campo Arqueológico, tomado como boa a lição.
Deixo aqui uma pequena reflexão. Creio que o projeto começa a envelhecer, geracionalmente, logo em meados da década de 80. A saída do Cláudio da Faculdade impediu que, ano após ano, fosse chegando gente nova que o tinha como professor. E ser aluno dele, acreditem-me, fazia toda a diferença. Um dia, há já muitos anos, disse-me ele “vocês achavam que escolhiam vir para Mértola, quando eu é que vos selecionava e puxava para cá”. Quebrado esse laço com a Universidade, só muitos anos volvidos a ligação se reataria. Num certo sentido, era já um pouco tarde.
Com frequência, é nos pequenos gestos reconhecemos a excecionalidade dos homens. Recordo aqui dois momentos que me marcaram. Há muitos anos, o Cláudio foi convidado a proferir seis conferências, sobre património islâmico, na Fundação Calouste Gulbenkian. O anfiteatro esteve sempre a abarrotar. Na última conferência, o tema era a cultura no al-Andalus. O Cláudio não disse uma só palavra nesse dia. O Cláudio convidou para irem a Lisboa três camponeses, Manuel Bento, Perpétua Maria e Francisco António, três artesãos dessa estranha e magnífica arte do cante e da viola campaniça. Foram eles as estrelas da tarde, num recital memorável, na Fundação Gulbenkian. O resultado foi uma interminável ovação. Porque o que ficara dessa memória mediterrânica estava aqui, nos campos do Alentejo, mais do que em qualquer vitrina.
O outro episódio ocorreu no início de 2002. Tinha havido mudança de partido à frente dos destinos da Câmara de Mértola. O Cláudio foi visitar, poucos dias volvidos, um velho militante socialista, Olímpio Bento, que estava já muito doente, levando-lhe, em homenagem, um cravo vermelho. Se alguém merecia celebrar essa vitória era o tio Olímpio.
É esta a minha memória mais intensa do projeto de Mértola. A do sítio das coisas ilógicas, difíceis e contra a corrente, feitas de sonhos, de mitos e de irrealidades. De revistas sem peer-reviews, de museus sem um tostão no dia do arranque, de recuperações de ermidas, de vontade, de tenacidade e de heterodoxias várias. Mas acima de tudo, e essa foi a grande lição para todos nós, de proximidade às pessoas e de um compromisso cultural que foi, desde o primeiro dia, uma forma de participação cívica e de combate político.
Termino como terminei a minha tomada de posse em Moura, há 10 anos.
Para além da curva da estrada, de Alberto Caeiro:
Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.