É
um tema recorrente na minha vida e dará, dentro de meses, mote para um pequeno
livro. Em meados da década de 80 deram entrada, no Museu de Moura, dois
conjuntos de plaquinhas pintadas provenientes de escavações do castelo feitas
no castelo em 1980 e em 1981, sob a direção de Jorge Pinho Monteiro, entretanto
falecido.
Arcas
de marfim, primorosamente lavradas, já tinha visto. O Tesouro da Sé de Braga tem
uma, de inícios do século XI... Mas placas pintadas (mais pobres, em osso!),
nunca tinha visto. Valeu-me a ajuda de Guillem Rosselló-Bordoy (1932-2024),
grande erudito e homem de extrema simplicidade. Orientou-me “vê o livro de
Blythe Cott e os textos de José Ferrandis; começa por aí”. Duas semanas em Madrid
fizeram-me girar entre a biblioteca do Instituto Arqueológico Alemão e do Museu
Arqueológico Nacional. Perplexo, reparei que as “minhas” peças nada tinham a
ver com o luxo de arte de corte das siculo-arabic publicadas por Cott. E
que as figurinhas humanas pintadas na arca de Moura eram muito semelhantes às representadas
nas peças de cerâmica esgrafitada de Murcia. Data dos materiais murcianos?
Segunda metade do século XII. Uma cronologia compatível com a que eu propunha
(finais do século XII – inícios do século XIII). Há cerca de 15 anos, as escavações
no Castelo de Moura “deram” mais conjuntos de painéis em osso, como idêntica
decoração aos que já existiam, mas sem dúvida pertencentes a outras arquetas.
A
procura de paralelos prolongou-se ao longo dos anos. Até dar, quase por acaso,
com uma peça quase idêntica à de Moura, no Victoria & Albert Museum, em Londres.
A datação atribuída no site, tal como no livro “Islamic Arts from Spain”, bem
como a origem sugerida (sul de Portugal ou de Espanha) era, também, a que eu
próprio propunha para os materiais de Moura. Intrigado, arranjei forma de entrar
em contacto com Mariam Rosser-Owen, conservadora do museu londrino, para saber
como chegara a tal conclusão. A resposta foi desconcertante: “datei as peças a
partir de um texto que você publicou; estou de acordo com a sua datação”.
Temos
dado (os meus colegas, aí em Moura, e eu) a devida divulgação às peças. Que já
estiveram, nomeadamente na exposição “Guerreiros e Mártires (Museu Nacional de
Arte Antiga, 2020/2021). Quanto mais o tempo passa, mais me assombra a
“impossibilidade” da presença destas arquetas na nossa terra. É provável que
tenham vindo de um centro de produção sevilhano. A “orientalização” – da
ornamentação à representação das figurinhas humanas, vestidas com o que parece
ser uma túnica ou “kaftan” – é o traço mais evidente destas pequenas joias da
arte islâmica. A sofisticação da cultura mediterrânica prolongar-se-ia, em
Moura, até finais do século XV, como o demonstra a Bíblia Hebraica feita na
nossa terra, em 1470, e que está hoje numa biblioteca em Oxford. Mas esse é
outro tema, ao qual voltarei num destes dias.
Crónica em "A Planície"