sábado, 30 de novembro de 2019

ESCHER NA ÍNDIA

Relatividade é o título deste trabalho de M.C. Escher, datado de 1953. É difícil acreditar que o tenha feito sem ter visto ou pensado no poço com escadas de Chand Baori, no Rajastão. É um dos tais sítios que gostaria de poder ver, um dia... A obra levou quase um milénio a completar. São 3.500 degraus em 13 andares. Escher é menos exuberante, mas não menos impressivo.


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

TODO O OURO DE ÁLVARO PIRES DE ÉVORA

Só as palavras BIZÂNCIO e OURIVESARIA me soavam, à medida que ia percorrendo as salas do Museu Nacional de Arte Antiga. A exposição é magnífica, com uma montagem que é, como sempre, irrepreensível. Imagens e espaços devidamente contextualizados, numa explicação clara de como o percurso se foi construindo. Não pude deixar de comentar, para uma amiga, jornalista do "Público", que dava a ideia que Álvaro Pires de Évora tinha perdido o combóio do Renascimento e tomara um pouco o caminho de um passado que terminava ali. A resposta foi curiosa "sabes lá se ele não tinha consciência disso mesmo e quis ficar assim e não tomar outro rumo; provavelmente dava-lhe prazer fazer as coisas daquela maneira". Provavelmente, sim.

No final, encontrei um manifestamente feliz, e bem mais descontraído, Joaquim Caetano. Fez uma observação rápida "já viste que a fasquia está alta". Claro que sim, constatei. Ou seja, a próxima exposição, que comissariaremos, mano-a-mano, tem agora mais essa responsabilidade. Na próxima segunda-feira, ao final da manhã, retomaremos o dossiê. Que já vai avançado. Mas que não se pode atrasar. Maio de 2020 é já ali.

QUINTA COLUNA Nº. 7: O SILÊNCIO DOS EX-PRESIDENTES

Fui há, semanas, muito criticado por uma pessoa amiga por ter publicado uma fotografia da praça principal de Moura deserta, durante o Festival do peixe do rio e do pão. Supostamente, eu estaria a criticar uma iniciativa da autarquia. Logo, tendo sido presidente da câmara não o deveria fazer. Ou seja, os antigos presidentes de câmara passam, assim, a estar sujeitos a uma mordaça. Não devem comentar, criticar ou colocar questões sobre matérias de governação local. Apenas e só, porque já desempenharam essas funções. É uma posição curiosa. Fui, em 2017 e antes de deixar o cargo, acusado de irregularidades graves (iriam chamar a Inspeção-Geral de Finanças, tal a gravidade da coisa…). E havia, dizia o agora presidente, “um polvo dentro da câmara”. Nenhum destas afirmações causou escândalo ou indignação. Ou seja, caluniar é legítimo, publicar uma fotografia, sem qualquer comentário meu, é condenável. Uma perspetiva que, naturalmente, não subscrevo.

Devem os ex-presidentes atuar como pretensos “tutores” ou como auto-nomeados “provedores”? Seguramente que não. Para que conste: dos 461 textos publicados no meu blogue pessoal entre 19 de novembro de 2018 e 19 de novembro de 2019, apenas 14 têm referências críticas a matérias referentes à Câmara Municipal de Moura. Ou seja, 3 (três) %. Se a transição para a vida profissional foi feita em poucas semanas, o afastamento dos dossiês que tinha a meu cargo durou um pouco mais. De forma deliberada, fui-me (re)envolvendo nas matérias profissionais. Sem nunca me afastar de Moura. Nem deixar de estar atento. Uma coisa, é estar sempre a “marcar em cima”, o que me parece despropositado e desadequado. Outra coisa, bem diferente, é impôr-me um silêncio que também não se justifica.

Os ex-presidentes não são senadores? Decerto que não. Cola-me mal a imagem e não tenho jeito para poses hieráticas. Muito menos estão (estamos) obrigados à mudez. Menos ainda quando são (eu sou) vergastados, com regularidade.

Devem os ex-presidentes guardar silêncio? Naquilo que é o quotidiano de um concelho, sim. Nunca me entusiasmaram os comentários críticos que se reportam ao passeio partido, à erva que não é cortada, à placa toponímica que está torta. São minudências que não refletem o que, de facto, importa, na gestão de uma autarquia. Nunca liguei, nunca ligarei a comentários desse teor. Venham de onde vierem, tenham como destinatário quem tiverem. Já outras questões não me merecem silêncio. Sinto-me no direito de questionar, como qualquer cidadão. Com mais distanciamento, decerto, mas sempre tendo em conta o que antes disse quem agora está no poder, de que aleivosias quis fazer lei, o que se propôs fazer e o que está, afinal, a fazer.

Se há coisas sobre as quais não devo guardar silêncio? Claro, mas não vou estar aqui a entrar em detalhes desnecessários. Sobre essas matérias preparo análise mais aprofundada, de crítica e auto-crítica, de leitura das coisas e de auto-avaliação. Não esquecerei, claro, aquilo que alguns dizem quando estão na oposição e a falta de vergonha com que fazem exatamente o oposto do que haviam jurado quando passam para o poder. É justamente esse oportunismo, feito de sorrisos maviosos, de discursos com mais açúcar que um xarope para a tosse, é precisamente essa incapacidade para fazer acontecer, para executar e para avançar que nunca nos devem remeter ao silêncio. É a falta de caráter e de princípios que é preciso denunciar e combater. Tenhamos nós sido ex-qualquer coisa ou não.

Paris Nogari (c. 1536–1601)
Allegoria del silenzio. 1582 (Vaticano)


Crónica publicada hoje no "Diário do Alentejo"
(o texto do DA tem uma "gralha de corretor", que já ía no original... é maviosos e não outra coisa)

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O QUOTIDIANO ISLÂMICO, NO MONTE ESTORIL

Há uma ideia feita quanto à existência de um urbanismo islâmico, de ruas intrincadas e tortuosas. Nesse sentido, o Monte Estoril terá decalcado o modelo. A palavra planeamento ainda tinha, certamente sido inventada quando o sítio foi delineado. Um absurdo de ruas e ruelas, becos sem saída e curvas e contra-curvas. Com sorte, dei com a Avenida Castelhana à primeira.

Mais de 50 pessoas enchiam a sala da British Historical Society. Nunca tinha dado uma conferência com entradas pagas... O que me preocupou sobremaneira. Pensei "se isto corre mal, é uma barraca". Não correu nada mal. No final houve sitting ovation (por estarem sentados, não no sentido da expressão em calão 😊...) e perguntas - muitas, mesmo... Depois da sessão, várias pessoas me perguntaram, em privado, qual o partido pelo qual tinha sido eleito mayor. A cara de surpresa de dois deles é inesquecível.

Um final de tarde, muito diferente do habitual, indeed.

108 ANOS

36 x 3 = 108. Foi este o tempo que três homens estiveram encarcerados por terem assassinado uma pessoa. Acontece que não foram eles a cometer o crime, ocorrido em 1983. Foi com um arrepio que li a história. Foram incriminados com base em provas inexistentes ou distorcidas. O julgamento foi uma trapaça, denunciada ao fim de 36 anos. Perderam a juventude e a idade adulta. Perderam a possibilidade de ter uma vida normal. Foram libertados há dias. Oxalá vivam muitos anos, ainda que já nada compense a vida perdida. Os três são negros. Será uma coincidência? Não me parece.


Alfred Chestnut, Ransom Watkins e Andrew Stewart

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O MADEIRAMENTO É TODO EM FERRO

É uma boutade (passe o galicismo) conhecida na minha terra. Alguém, ao descrever o luxo de uma casa em construção, ilustrou o discurso com esta imagem imbatível "aquilo é só dinheiro... o madeiramento é todo em ferro!". Lembrei-me desta inesquecível tirada, ontem, ao receber uma nota de imprensa de uma autarquia, que mão amiga me fez chegar. O texto é notável: “A Árvore da Partilha, neste ano de 2019, foi construída com materiais recicláveis, destinados ao ecoponto amarelo, exceto o metal”. É um texto que, como os anteriores, denota um apurado domínio da Língua Portuguesa, e uma claríssima forma de comunicar. Francamente bom, mas a anos-luz do célebre título do “Diário de Coimbra” ONTEM, FALTOU A LUZ NA RUA DO VISCONDE DA MESMA.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

A INAUDITA AVENTURA DO ARCO DO VISCONDE

0 grande Homero às vezes dormitava, garante Horácio. Outros poetas dão-se a uma sesta, de vez em quando, com prejuízo da toada e da eloquência do discurso. Mas, infelizmente, não são apenas os poetas que se deixam dormitar. Os deuses também.

Assim aconteceu uma vez a Clio, musa da História que, enfadada da imensa tapeçaria milenária a seu cargo, repleta de cores cinzentas e coberta de desenhos redundantes e monótonos, deixou descair a cabeça loura e adormeceu por instantes, enquanto os dedos, por inércia, continuavam a trama. Logo se enlearam dois fios e no desenho se empolou um nó, destoante da lisura do tecido. Amalgamaram-se então as datas de 4 de Junho de 1148 e de 29 de Setembro de 1984.

Começa deste modo A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho, de Mário de Carvalho (n. 1944). Lembrei-me há dias, ao retomar uma imagem que apareceu algures no facebook. Ali se enleiam as imagens do Arco do Visconde, em Moura e qualquer outro sítio, que não consigo imaginar onde onde seja. O trabalho de recomposição é notável, mas também não consigo descortinar o objetivo.


segunda-feira, 25 de novembro de 2019

NA SEMANA DE ÁLVARO PIRES DE ÉVORA, COM OS OLHOS EM 2020

Vai ser o momento da minha semana. Na quinta, às 18h 30 (com a aula a acabar às 17h 45 vai ser um belo sprint até Arte Antiga...), é inaugurada a exposição sobre Álvaro Pires de Évora. Um português que fez carreira fora de portas. E do qual, só há poucos anos foi possível garantir a presença, em Portugal, de uma obra.

domingo, 24 de novembro de 2019

JUNTO DA "DETESTÁVEL"

O semanário "Independente" entreteve-se a dar cabo da vida a muita gente. Leonor Beleza foi uma das vítimas desse processo. Paulo Portas considerava-a "detestável". O caso dos hemofílicos praticamente arrumou a carreira de Beleza. Escrúpulos não rima com Portas.

Agora, a Fundação Champallimaud, da qual Leonor Beleza é presidente, chama Paulo Portas para o Conselho de Curadores. Há razões que a razão desconhece.

DO DIRHAM AO BOLHÃO

Não era uma moeda, eram duas. Um bolhão e um dirham, D. Sancho I e os almóadas. Foram recolhidas na campanha arqueológica de 2019, junto ao convento do castelo, em Moura. Apesar da relativa "descontextualização" (foram achadas em níveis de superfície) são peças importantes pelos níveis em que andamos, e pela contemporaneidade dos achados.

Nos próximos anos, iremos alargando um pouco a área de intervenção. Em 2020, se definirá "o quê". Talvez o urbanismo, talvez a água. Foram sendo publicados, ao longo dos anos, trabalhos em torno da História e da Arqueologia de Moura. Umas vezes a solo, outras (a maior parte) em colaboração com colegas que têm estado neste projeto de investigação. A saber: Artur Goulart de Melo Borges, José d'Encarnação, José Gonçalo Valente, Maria da Conceição Lopes, Miguel Rego e Vanessa Gaspar. No início de 2020 verá a luz do dia mais uma publicação. E Moura será tema de conferência, em Palmela. Moura on my mind, cantaria Ray Charles se soubesse onde Moura fica... A lista, incompleta, de trabalhos editados, é esta:


A. Almocavar de Moura - localização e epigrafia in "Arqueologia Medieval", no. 1, Porto, Edições Afrontamento, 1992, pp. 65-69
B. Moura na Baixa Idade Média - elementos para um estudo histórico e arqueológico in "Arqueologia Medieval", no 2, Porto, Edições Afrontamento, 1993, pp. 127-157
C. Fortificações modernas de Moura, Moura, Câmara Municipal de Moura, 2005
D. Convento de Santa Clara (Moura) – um conjunto cerâmico do século XVII, Moura, Câmara Municipal de Moura, 2005
E. 457. Placa funerária romana em Moura (Conventus Pacensis) inFicheiro Epigráfico” (suplemento de Conímbriga), no. 103, Coimbra, Instituto de Arqueologia, 2012
F. 460. Ara funerária romana em Moura (Conventus Pacensis) inFicheiro Epigráfico” (suplemento de Conímbriga), no. 104, Coimbra, Instituto de Arqueologia, 2013
G. Moura – fortificações modernas: passado e futuro in CEAMA, no. 10, Câmara Municipal de Almeida, 2013, pp. 108-120
H. Castelo de Moura. Escavações arqueológicas 1989-2012 – catálogo, Moura, Câmara Municipal de Moura, 2013
I. Lacalt e Laqant: da toponímia antiga à islamizaçãin “O sudoeste peninsular entre Roma e o Islão, Mértola, Campo Arqueológico de Mértola, 2014, pp. 168-177
J. Moura e Serpa entre a Antiguidade Tardia e a Islamização in Visões do invisível – património religioso da margem esquerda do Guadiana” (dir. José António Falcão), 2a ed., Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2015, pp. 14-45
K. Castelo de Moura. Escavações arqueológicas 1989-2013 – texto, Moura, Câmara Municipal de Moura, 2016
L. Água – património de Moura, Moura, Câmara Municipal de Moura, 2017

sábado, 23 de novembro de 2019

POIS É...

Em 2016, o Sporting perdeu o campeonato por dois pontos. Sempre simpatizei com Jorge Jesus, e claramente o escrevera meses antes (v. aqui). Jesus celebrizara-se, no Benfica, pelas maluquices táticas, e por misturar o ótimo e o péssimo. No Sporting falhou por pouco, Agora, no Flamengo, acerta por muito. O seu estilo peculiar é um must no Brasil. Nunca, no Rio, devem ter imaginado que a época ia acabar assim. Pois é...

LIVRE, AO JEITO DELA...

E a surpresa qual é, afinal? O estilo de Joacine sempre me motivou fortíssimas reservas. Não me enganei.

LIVROS, E MAIS QUE LIVROS

Não é hoje, é amanhã. Arranca a Feira do Livro de Mértola. Desde há muitos anos que é um dos grandes momentos culturais do concelho. Mais de 30 anos, sem dúvida. Tenho imagens muito precisas da Feira do Livro de 1991, quando cá veio José Saramago e fomos (a equipa do CAM) jantar com ele ao Al-Sakrane. Achei-o distante e pouco cordial. A feira, contudo, foi ótima. Esta também vai ser.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O VENTO MUDOU: EDUARDO NASCIMENTO (1944-2019)

A melhor homenagem a Eduardo Nascimento (1944-2019) veio com o tempo. A ele e a Nuno Nazareth Fernandes (n. 1942), que compôs O vento mudou. A música ficou esquecida durante quase 20 anos, até ser resgatada pelos Delfins, em 1984. Depois, têm-se multiplicado as "versões". Diferentes, mais ou menos inspiradas, mais ou menos próximas, mas a partir de um original inesquecível. A que mais gostei foi uma que ouvi na Amareleja, pelos Amor Electro. Não há gravação.

Delfins
Da Vinci
Grande Orquestra de Luís Gomes
UHF
Namorados da Cidade
Ricardo Oliveira



IMORTALIDADE


Ao passar, ontem ao final da manhã, pela estátua do Marquês de Sá da Bandeira (1795-1876), estava uma gaivota preguiçosamente pousada sobre a cabeça do estadista do século XIX. A gaivota tisnava de branco o verde da estátua. Lembrei-me de um poema do hoje injustamente esquecido Bernardo Gonzaga.

A imortalidade é uma gaivota pretibranca
Vertendo fezes ácidas
No cocuruto de um general
No alto do merídio.

Bernardo Gonzaga – Poemas finais

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

AMIANTO

É assunto recorrente, nos últimos tempos. Tem-se falado imenso na questão, a propósito das escolas. É uma preocupação justificada. Recordo-me das conversas tidas, em 2014, com os colegas da vereação (José Gonçalo, Céu Rato e Joaquim Simões), por causa desse assunto. E das análises que mandámos fazer, a uma entidade devidamente certificada. Os edifícios com cobertura de amianto eram algumas das escolas, o pavilhão gimnodesportivo e os pavilhões à entrada da feira. As partículas detetadas eram cerca de 20 vezes inferiores aos limites legais. Podíamos ficar descansados. Mas não ficámos. Foi dado início a um processo de reabilitação de imóveis. As escolas são, hoje, completamente seguras, além de terem tido outros melhoramentos, concluídos em 2016. No pavilhão gimnodesportivo foi removida a cobertura em amianto.

Só faltam o pavilhão da feira e a escola profissional.

Pavilhão de exposições e Escola Profissional

terça-feira, 19 de novembro de 2019

SER SOLITÁRIO

Foi talvez no início de 1980 a única vez que vi José Mário Branco atuar ao vivo. Foi no Teatro Aberto, numa tarde de domingo. Falava-se na altura do espetáculo Ser solidário. Devo ter lido alguma crítica no semanário Se7e, cuja leitura não dispensava, por essa altura. O disco foi editado, coisa impensável nos nossos dias, com a participação dos espetadores que quiseram contribuir. E que, claro, tiveram depois direito a um exemplar.

Tenho, curiosamente, imagens muito vivas desse espetáculo, apesar de terem passado quase 40 anos. Recordo-me de José Mário Branco ter cantado a marcha "Qual é a tua, ó meu?", que tinha sido chumbada num concurso promovido pela Câmara Municipal de Lisboa, na altura dirigida pelo Eng. Krus Abecasis. A marcha tinha como estrofes coisas como:

Com tanta Ladra no mundo 

O teu Rato andava à caça 
de Sapadores 
Quanto mais a dor Dafundo 
Menos a gente acha Graça 
Aos ditadores 

ou


Não é possível meter 

Águas Livres numa Bica, 
Como tu queres 
Quem pensa assim, podes crer, 
Campo Grande onde Benfica 
É nos Prazeres

O refrão era:

Qual é a tua, ó meu? 
Andares a dizer "quem manda aqui sou eu"? 
Qual é a tua, ó meu? 
Nesse peditório o pessoal já deu.

Quando acabou de cantar, José Mário Branco fez um ar (falsamente) compungido e disse baixinho: "não sei porque é que não gostaram da minha marchinha...".


Vi-o, algum tempo depois, como ator de uma peça intitulada Cogumelos, no desaparecido Teatro Vasco Santana. Era uma colagem de textos, encenada por Jorge Listopad, em que, às tantas havia uma rábula sobre a conquista de Lisboa, na qual um cabide se transformava em cruz e havia uma procissão. Uma farsa inolvidável.

E agora? Agora, vamos ouvir José Mário Branco. Que foi solidário, solitário e um digno outsider.

O PAVÃO

É uma peça de cerâmica - parte dela, na verdade -, recolhida há quase 40 anos no Castelo de Moura. Sempre que a vejo, com aquelas penas em tons de amarelo e de verde penso em pavões. Acho que é uma invulgar taça-pavão a que nos coube em sortes. Gabriela Mistral também teve um pavão assim, fugidio como o nosso.

Que sopló el viento y se llevó las nubes 
y que en las nubes iba un pavo real, 
que el pavo real era para mi mano 
y que la mano se me va a secar, 
y que la mano le di esta mañana 
al rey que vino para desposar. 
¡Ay que el cielo, ay que el viento, y la nube 
que se van con el pavo real!

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

NUNCA SE FAZ A FOTOGRAFIA QUE SE QUER...

Não sei de quem é a frase, mas é verdadeira. Com uma única exceção - na Síria, em 2003, em que me apercebi do que iria acontecer -, as imagens ficaram melhor ou pior do que esperaria naquele preciso momento. Ao recolher hoje sete rolos, feitos ao longo de 2019, constatei isso mesmo, uma vez mais. Há coisas que vão direitinhas para o lixo, outras que ficarão à espera do que virá a seguir. Não fazendo eu a mínima ideia do que virá a seguir. Como não há a veleidade de "fazer obra", isso dá uma não-pressa e  uma invulgar tranquilidade e segurança.

domingo, 17 de novembro de 2019

PASSAPORTE MOURENSE

Foi um grande fotógrafo. Teve uma carreira de décadas e foi bastante prolífico. Chamava-se António Passaporte (1901-1983), e nasceu em Évora. A sua obra é de uma extraordinária utilidade para nos dar uma imagem viva do que foi o nosso século XX. Muitas das suas fotografias estavam à venda, sob a forma de postal ilustrado. Eram fotografias a preto e branco, de grande recorte e luminosidade. Como esta, que nos mostra o interior do Castelo de Moura. Foi assim que conheci o sítio, em finais dos anos 60. Foi assim que ele se manteve, até 2002/2003. Por isso mesmo a obra de António Passaporte nos é essencial para uma reconstrução da imagem dos sítios.

sábado, 16 de novembro de 2019

POULIDOR

O que é ser segundo? O que quer dizer não ganhar? Muitas vezes me fiz esta pergunta. Muitas vezes me lembrei de Poulidor, desaparecido há dias. Poulidor não só não ganhou a Volta a França, como nunca vestiu a camisola amarela. Foi três vezes segundo no Tour e cinco vezes terceiro. Mas tinha uma imensa popularidade. Vencedores do Tour como Lucien Aimar ou Roger Pingeon estão a léguas do patamar de Raymond Poulidor. Muitas vezes me lembrei de Poulidor a propósito de uma célebre tirada do produtor cinematográfico Louis Mayer, que citava o filme Ninotchka, como tendo ganho os prémios, enquanto os filmes de Andy Hardy é que tinham sucesso. Porque estes ganhavam o coração do público. Decididamente, Poulidor, sempre segundo, era o Andy Hardy e não a Ninotchka das bicicletas.

Anquetil (à esquerda) e Poulidor (à direita)

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

CRÓNICAS OLISIPONENSES - XXXVIII

Lisboa é uma cidade gélida. Linda de morrer, mas gélida. É muito melhor nas margens que no centro. Ainda hoje, no 13 e na linha de Sintra, demonstrei isso, coloridamente, a uma velha amiga.

Há momentos de exceção. Há umas noites atrás, vi o autocarro ao longe e pensei "não chego lá, nem pensar". E a seguir também pensei "****-**, *******, *****". Ia ter de esperar 25 minutos pelo seguinte. Comecei a correr (tenham a bondade de considerar como correr o trote desengonçado de um cinquentão, tentando segurar a pasta com uma mão e o borsalino com a outra, como o da fotografia, mas a léguas dele) e o autocarro começou a abrandar. Depois, parou na paragem deserta. A porta ficou aberta longos segundos, enquanto continuava o meu trote, cada vez desengonçado. Atirei-me para dentro do 54. Olhei o motorista. Era um dos habituais das horas finais daquela carreira. Reconhecera-me, somos sempre os mesmos aquela hora. E ficara à espera. Balbuciei um "obrigado", enquanto tentava não desmaiar. Fiquei depois a pensar que uma cidade assim, gélida e distante, tem momentos de calor. Nos sítios por onde passa o povo. Como as barulhentas e alegres conversas, hoje no 13, bem nos mostraram.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

DE QUE LADO SE ESTÁ

Ter estudado História é, neste caso e assim suponho, uma vantagem. Porque nos remete para o passado e nos dá uma leitura mais abrangente das coisas. A história recente da América Latina é um longo estendal de ingerências americanas e uma longa luta entre liberdade e opressão. E onde há fome, não há democracia e não há liberdade. Há, em tudo isto, um sim e um não.

É por isso que estou com Lula da Silva e com João Goulart e não com Jair Bolsonaro ou com Costa e Silva. Que sim com Fidel Castro e que não com Fulgencio Batista. Que sim, mil vezes sim, com Chávez e jamais com Pérez Jiménez (cujos esbirros acabaram como acabaram...) ou com Andrés Pérez. Sim, com Salvador Allende e nunca com Augusto Pinochet. Sempre com Juan José Torres e com Evo Morales e nunca com Hugo Banzer ou com esta coisa que agora se autoproclamou presidente. Sempre com Rafael Correa e nunca com Lenin Moreno. Sim a Velasco Alvarado e não a Morales-Bermúdez. Sim a Ortega, não a Somoza. A história da América do Sul não termina hoje, isso é certo. Tal como não acaba aqui a luta contra a opressão.


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

O BRASIL AINDA É UMA COLÓNIA?

O Brasil ainda será uma colónia portuguesa? O Bloco de Esquerda parece pensar que sim. Lê-se no site bloquista:

O grupo parlamentar do Bloco exige ao governo português uma posição firme de salvaguarda dos legítimos direitos das comunidades indígenas, sublinhando que, caso o aval seja dado à construção, por parte do grupo Vila Galé, será destruída uma das maiores fontes de sustento da comunidade nativa Tupinambá.

E conclui-se, mais adiante:
Os bloquistas sinalizam que, caso o aval seja dado à construção do hotel de luxo por parte da rede hoteleira portuguesa Vila Galé, será destruída uma das maiores fontes de sustento da comunidade nativa Tupinambá, e manifestam a sua mais veemente condenação quanto a todo este caso, exigindo ao governo português uma posição firme de salvaguarda dos legítimos direitos da comunidade Tupinambá de Olivença.

Lê-se e não se acredita. Uma coisa é estar contra empreendimentos daquele género (eu estou, sem dúvida!) ou estar solidário com comunidades vítimas de um progresso desenfreado, desrespeitador e opressivo (eu também estou solidário, sem dúvida!). Outra coisa é exigir que o governo de um país tome posição e faça exigências sobre matérias de ordenamento de outro país.

De uma forma muita clara, não têm noção do que são matérias de Estado. Bem que queriam ir para o governo. Imagine-se a animação folclórica de uma governação destas. Em termos objetivos, "vivem disto", inventando causas e pseudo-causas.

O grito do Ipiranga, algo alheio ao Bloco de Esquerda (quadro de Pedro Américo,
pintado em 1888 e hoje no Museu Paulista - USP)

O GRANDE CINEMA ORIENTAL

Os nomes são-nos estranhos, difíceis de reter e de pronunciar. Para nós, claro: Bong Joon-ho, Hirokazu Koreeda, Zhang Yimou e o meu favorito, Wong Kar-Wai. Mas, há muitos anos, que o Oriente dá cartas, na escrita, na narrativa das imagens, no tratamento da cor. Vi, ontem, o desconcertante Parasitas. O final é tarantiniano, que o mundo é, cada vez mais, global. O argumento quebra e perde-se. O que é pena. A cor do interior da casa é uma grande trabalho pictórico e mereceu grandes elogios, mas o que mais gostei foi do caos visual de alguns exteriores. Porque, cada vez mais, me agrada ver o lado b das coisas.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

O GLORIOSO REGRESSO DA UNITED FRUIT

A empresa já não existe, mas o espírito e o estilo norte-americano de intervenção sim. O episódio Evo Morales é o mais recente capítulo da saga. Não será, bem entendido, o último.


UMA QUESTÃO DE MÉTODO

De entre as muitas pequenas manias, há uma que tento não falhar. Deliberada e programaticamente. Refiro à necessidade de dar uso concreto a todas as imagens que se utilizam numa publicação. Ou seja, se a imagem lá está é por alguma razão. Das duas uma, ou é citada no texto ou tem ficha num anexo. Ficar "pendurada" é que nem pensar.

Qual o motivo do desabafo? Tenho passado dias negros à volta de publicações que colocam peças em estampas, que não as datam, que não as citam no texto, obrigando o leitor a andar páginapratráspáginapráfrente, ao melhor estilo barata tonta.

O que vale é que isto (este) acabou... Tenho usado e abusado do vernáculo. Versão científica.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

JOACINE

Pensei que fosse uma fotomontagem de mau gosto. Cautelosamente, fui até ao twitter. Não era fotomontagem. Não é necessário fazer grandes comentários. Ou gritar indignações. A lógica de Joacine Katar-Moreira é simples e linear. Os que se acham elites pensam, de facto, assim. Olham o mundo do alto da sua arrogância.

O texto foi, entretanto, apagado do twitter. A maneira como Joacine Katar-Moreira vê o mundo não foi, decerto, apagada. Continuará messiânica, inteligente, indutora e conduta das massas. Cada geração tem o Arnaldo Matos que merece...

VOX POPULI

Eis a vingança póstuma de Blas Piñar (1918-2014). A Fuerza Nueva finou-se há muito. Conhecendo um pouco a realidade espanhola, nunca fiquei convencido com o enterro do franquismo. Ressuscitou ontem.

Ouvi falar do VOX, pela primeira vez, em agosto de 2014, no aeroporto de Barajas. O partido tinha poucos meses. O meu interlocutor era um advogado de Granada. De ar próspero e conservador. Sem rebuços disse "Es el VOX; vamos a cambiar las cosas". Fiquei desconfiado e atento. Os ventos sopram a favor dos populismos de extrema-direita. E em Espanha, o vírus franquista nunca foi aniquilado. Em 2015 tiveram 0,2% de votos (0 deputados). Em novembro de 2019 chegam a 52 deputados (15,1 % de votos). É certo que o bloco de direita (PP/C's/VOX) tem sensivelmente os mesmos deputados que tiveram em abril. Mas a extrema-direita deu um salto. Que é, para todos nós, um sobressalto.

A vitória em Ceuta é um alerta. Como o são os triunfos em Algeciras e em El Ejido (v. aqui).

O VOX cresceu. O CHEGA irá pelo mesmo caminho. A este, o que lhe falta em consistência política sobra em oportunismo e em falta de vergonha. A suivre...

domingo, 10 de novembro de 2019

E A TORRE DO RELÓGIO FOI INAUGURADA...

Passava das 20 horas de ontem quando, sem placa comemorativa nem qualquer intervenção (nesta vida política, há 1001 maneiras de desvalorizar o que está feito), se deu início ao espetáculo que assinalou a abertura da torre do relógio. Entrei no recinto, depois de uma agitada passagem pelo bar da Filarmónica, pela primeira vez depois de setembro de 2017. E pude pensar baixinho "tínhamos razão, quando por este caminho avançámos". Como me segredou uma velha amiga, o projeto, e o que dele resultou, resume-se em palavras como sobriedade e bom gosto. Um edifício esventrado e com uso precário deu lugar a uma sala digna, e que a Amareleja merece. Foi uma noite feliz, e que me deixou de alma cheia.

Foi pena ter estado tão pouca gente. Mas uma inauguração às 20 horas é quase um convite à não presença. Do ponto de vista pessoal, virei, sem disfarçar o orgulho, mais uma página. E com a sensação de ter, uma vez mais, "estado em casa".


sábado, 9 de novembro de 2019

A SOMBRA DE LULA

Por detrás de Lula, espreita um indivíduo que dá pelo nome de Sérgio Moro. Há várias coisas que a oligarquia branca do Brasil nunca perdoou a Lula. Em primeiro lugar, a luta pela dignidade humana de milhões de pessoas que estavam à margem de qualquer proteção. No meio de inúmeras contradições, tentações, erros e corrupções emergiu o FOME ZERO. O P.T. prosseguiu uma caminho de equívocos, tornando-se, muitas vezes, "como os outros". São, claro, leituras feitas à distância e cruzando muitas leituras, de vários quadrantes. Como legado, nunca antes de Lula, tal como nunca depois de Lula, o povo esteve no centro das preocupações.

Lula acabou evolvido numa trapalhada imobiliária, foi detido e esteve preso. Sabe-se agora que a investigação a Lula foi orquestrada à margem da lei. Um sistema mafioso de quem pretende ser mais que a lei e melhor que a lei. Detrás desse sistema está um indivíduo de perfil perturbador que dá pelo nome de Sérgio Moro. É ele a sombra de Lula. Personifica a oligarquia branca. E é a imagem da antidemocracia que assola os nossos dias.


sexta-feira, 8 de novembro de 2019

NATAÇÃO OBRIGATÓRIA

A Banda do Casaco cantava

Natação obrigatória
na introdução à instrução primária
natação obrigatória
para a salvação é condição necessária


E eu acho que é mesmo necessária, a natação. Luís de Camões que o diga. Devia ser um nadador fora de série. Zarolho e só com uma mão (na outra levava Os Lusíadas...) lá chegou à praia. Salvou-se e salvou o poema.

Com um toque menos épico, terminámos a redação de um livro às 00:35 de hoje. Já lá vão 155.000 caracteres, o que dará umas 120 páginas impressas. Para nos vingarmos, o título será em latim. Chique a valer, diria o outro.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

REGRESSO AO GEAEM, 35 ANOS VOLVIDOS

Não foi bem um regresso. Precisava consultar plantas do século XVIII no Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar. Uma fantástico arquivo, preservado com rigor castrense. Já não me lembro como lá cheguei, no início de 1984. Mas as plantas de Lippe, de Miguel Luiz Jacob e de outros foram-me utilíssimas nos estudos sobre urbanismo.

Ontem, enviei um mail pedido a disponibilização de um nutrido conjunto de plantas de várias fortificações, para uma investigação na fase V2, para usar o jargão aeronáutico. Esperava eu que me marcassem um dia para ir ao local, o Palácio Lavradio, no Campo de Santa Clara. Em tempos era assim, com o diretor, um coronel muito idoso (assim me parecia, mas devia ter pouco mais anos do que eu tenho agora) a atender-nos.

Não tive tempo sequer de apanhar o 12. Recebi um mail a dar duas opções: ou usava a imagem digitalizada que o site disponibiliza ou pedia, em formulário próprio (que me facultaram), as plantas com maior resolução. Aguardo agora o envio. Não devo chegar a apanhar o 12.

O outono corre assim, morno e manso. Como o outono e as codornizes de Sakai Hōitsu.

Para ver plantas de fortalezas:

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

IT'S GROUCHO MARX, STUPID!

Foi há dias, num seminário sobre assuntos internacionais. Alguém resolve citar um teórico alemão, dizendo "como disse Marx, it's the economy, stupid". Dei um salto e julguei ter ouvido mal. Ao lado, confirmaram "sim, ele disse Marx". O autor da extraordinária afirmação é uma estrela emergente da política nacional. Pouco maduro, mas é do centrão e não tarda nada está numa qualquer televisão, opinando. A expressão "the economy, stupid" (sem o it's) é muito recente. Data de 1992. E nada tem a ver com Karl Marx. A menos que o jovem estivesse a pensar no legado de Groucho Marx...

terça-feira, 5 de novembro de 2019

AGADEZ, DE NOVO

Há sítios assim, como Agadez, que se tornam estranhas obsessões. Como Tombuctu. Em 2008, estive lá perto e decidi não ir. Provavelmente fiz bem. Agadez voltou a cruzar-me o dia, há pouco, com uma fotografia de Philippe Joudiou (1922-2008). Foi tirada em 1950, ainda eu não era nascido. Agadez hoje já não é assim, seguramente. A irrecuperável imagem onírica é, contudo, a que me ficará.


Grandes São os Desertos, e Tudo é Deserto

Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 

Grandes são os desertos, minha alma! 
Grandes são os desertos. 

Não tirei bilhete para a vida, 
Errei a porta do sentimento, 
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
Senão saber isto: 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
Para adiar todas as viagens. 
Para adiar o universo inteiro. 

Volta amanhã, realidade! 
Basta por hoje, gentes! 
Adia-te, presente absoluto! 
Mais vale não ser que ser assim. 

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 

Mas tenho que arrumar mala, 
Tenho por força que arrumar a mala, 
A mala. 

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 

Tenho que arrumar a mala de ser. 
Tenho que existir a arrumar malas. 
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
Sei só que tenho que arrumar a mala, 
E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 

Ergo-me de repente todos os Césares. 
Vou definitivamente arrumar a mala. 
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la; 
Hei de vê-la levar de aqui, 
Hei de existir independentemente dela. 

Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
Salvo erro, naturalmente. 
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 

Mais vale arrumar a mala. 
Fim. 

Álvaro de Campos, in "Poemas"