quinta-feira, 1 de maio de 2014

MEMÓRIA

Foi terrível ter lido, há cerca de uma semana, uma sondagem na qual cerca de 62% dos inquiridos considera que o País é hoje mais pobre do que há 40 anos. Ou ainda que 49% sustente que as condições de trabalho são hoje piores do que no fascismo. Nem o País é mais pobre nem as condições de trabalho são piores. À boa maneira das sociedades tradicionais, as coordenadas espacio-temporais tornam-se difusas e, em especial, a capacidade de leitura do tempo dilui-se. O que aconteceu há dez anos e há cinquenta torna-se, muitas vezes, insolitamente próximo. É o nosso popular “se fica longe? não, é logo ali”, em dimensão política.

Nem o País é mais pobre nem as condições de trabalho são piores, repito. A verdade é essa, mas a perceção é outra. Porquê? Porque falhou a transmissão dos conhecimentos, porque faltou a capacidade de explicar a diferença entre “antes” e “depois”. Tenho-me dado conta, nos últimos tempos, que a capacidade de ter uma leitura retrospetiva dos acontecimentos não é, para muitas pessoas, tão linear e tão evidente como seria de esperar. Ou, talvez o seja, depois de várias gerações de estudantes terem sido expostas a bizarras experimentações no domínio do Ensino…

Nem Portugal é mais pobre do que há 40 anos, nem o nosso concelho o é. Com todo o rol de imperfeições da Democracia, com todos os falhanços e as incongruências, mesmo considerando as aventuras europeias que levaram boa parte da nossa capacidade produtiva, vivemos num País e num concelho melhor do que o dos tempos do fascismo. As infra-estruturas de saneamento deram um decisivo salto em frente (em 1974 menos de metade das casas tinha água canalizada, em Portugal), as escolas colmataram as diferenças entre as nossas crianças e as dos grandes centros, os equipamentos desportivos não têm qualquer comparação possível com o que antes tinhamos, criou-se o Sistema Nacional de Saúde, o acesso à cultura e à informação generalizaram-se e são agora menos elitistas. O País hoje é mais pobre? Que raio de riqueza teria Portugal em 1970 com uma taxa de analfabetismo de 25,7% (hoje é de cerca de 5%)? Objetivamente falando, Portugal era um País mais pobre e mais atrasado do que o dos nossos dias. O mesmo se passa com Moura. Os exemplos que contradizem o óbvio erro da sondagem poderiam multiplicar-se.


Nestes dias que correm, urge usar a memória e aperfeiçoá-la. Argumentos falsos como os que estão por detrás do resultado da sondagem são perigosos, porque se difundem com facilidade. Novos fascismos se desenham à sombra da desinformação. À semelhança do que acontece com as serpentes, vê-se o réptil em formação por debaixo da fina casca do ovo. Os recentes resultados do “Front National” em França são um aviso. Um aviso ainda longínquo, mas que rapidamente se aproximará.


Crónica publicada hoje, no jornal "A Planície"

1 comentário:

José Francisco disse...

Imagem
Cliché de Alberto Malva (Original de 1906)
Edição em Postal de André dos Santos Conceição (Final dos anos 20)