terça-feira, 1 de setembro de 2015

UMA CRÓNICA SOBRE O SUL


“A casa tinha um pátio. Vivi nele, não sei quando. Não me recordo onde fica essa casa. A frescura do solo e a brancura da cal são as minhas memórias do sítio. Os pátios das casas são o centro do mundo e é à volta deles que belas mulheres rodopiam, envoltas em túnicas e em perfumes.

Lembro-me delas, mas os seus nomes confundem-se com os de outras mulheres. Cheiravam a jasmins. E a rosas também. Gostava de estar com elas e gostava dos silêncios, o das mulheres e o do pátio.

Quando desaparecem os muros de uma casa, ficamos sós, entre o que resta das ruínas. Depois, queremos partir. Queremos chegar a casa.”

Este é o início do argumento do filme “Chegar a casa”, de Ibrahim Kanara. A casa  inicial desaparece, o homem está no meio do nada. Parte depois à busca do sítio de onde partiu, com um bússola que apenas indica o sul. Tem como memória única um velho postal, de uma rua de Ghardaia, no sul argelino. Um homem perde-se e procura, depois, o caminho para o local de origem. Cruza a noite e atravessa a chuva. Vagueia por entre multidões, antes de chegar a casa. No momento da chegada, confronta-se com fantasmas do passado. A dúvida instala-se, de novo. Onde está? Onde chegou e quando se perdeu?

São dúvidas perenes e que mais se sentem quando partimos de um sítio e mais tarde regressamos. Todos os que deixam os sítios de infância, as amizades de uma vida, as paisagens de sempre, passam por isso. Um sentido de permanente perda ou ausência nunca se desvanece por inteiro. Como no célebre poema de Álvaro de Campos “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”, acaba-se no dilema “Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,/Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.” Quando balançamos regularmente entre dois sítios, mais densa se torna a deambulação.  E mais ácida se torna a dúvida. As perguntas repetem-se, obsessivamente e sem resposta à vista: quando chegamos a casa? em que momento nos perdemos? alguma vez regressamos mesmo, depois de um dia termos partido? Em “Chegar a casa” a dúvida nunca é resolvida.

A irmã do autor disse-lhe, ao ver a montagem, “o filme é autobiográfico, sabias?”. Ele não se tinha dado inteiramente conta, mas era verdade. O filme não é uma obra de arte, mas o objetivo tinha a ver com o sul enquanto velha e não resolvida obsessão. Do seu sul, que é geográfico, mas vai além disso.


“Chegar a casa”, uma curta-metragem de 15 minutos, estreou no Festival Islâmico de Mértola de 2015.

Crónica publicada hoje em "A Planície".

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