Há textos a cuja inteligência e sentido de humor não resisto. O que Ana Cristina Leonardo publicou, hoje, no Expresso, está nesse grupo. Aqui vai, na íntegra:
Rendida ainda ao fluxo memorialista que vem caracterizando estas crónicas (na última falei dos pardais do meu avô e na penúltima da peritonite do meu pai), vou agora debruçar-me sobre uma das derradeiras manifestações em que participei, esperando com tal evocação deixar claro a todos os que me leem (Obrigada! Obrigada! Obrigada!) que o país se mantém assim a modos que idêntico, pelo menos desde que O'Neill escreveu aquele soneto que começa assim: "Daqui, desta Lisboa compassiva,/Nápoles por Suiços habitada", etc.
Era 1975. O camarada Vasco queria mandar gente para a Sibéria (soi-disant), Otelo queria mandar gente para o Campo Pequeno, e o ELP, grupo de extrema-direita, queria mandar gente desta para melhor. No fim, Soares reuniu com Carlucci e o socialismo foi metida na gaveta mais ou menos pela mesma altura em que passava na TV o último episódio de "Gabriela Cravo e Canela".
Era, pois, 1975. A Rádio Renascença fora ocupada, estava a ser ocupada, ou ia ser ocupada. Não me lembro. Lembro-me, sim, que havia muita gente na Rua Capelo e que quando lá cheguei me perguntaram: "Vens para a manifestação de apoio aos trabalhadores?". Respondi que sim, ora essa, e o homem disparou: "Vais para o piquete das pedras!". E pôs-me um capacete da Lisnave na cabeça. Cheguei ao piquete das pedras (as pedras arrumadinhas a um canto) e não conhecia ninguém. Fartei-me de esperar pelas forças da reação, que nunca mais chegavam para ser apedrejadas, devolvi o capacete e disse que ia só ali. Distraí-me com um soldado que explicava aos passantes como manejar uma arma, reparei que se fizera tarde, tinha um comboio para apanhar e fui para casa.
Ocorreram-me estes acontecimentos de antanho ao ler as recentes declarações do porta-voz da PSP a propósito da concentração em São Bento no dia da greve geral. Cito: "O agente tem contusões nos braços, escoriações no crânio e as últimas informações indicam que está livre de perigo". E fora agredido com quê: com um guarda-chuva hostil? Pergunto.
O texto é o'neillianno - a aventura acaba sempre numa pastelaria -, naquele pragmatismo burguês de ir apanhar o comboio deixando a revolução a meio. O poema citado aqui fica, certeiro e na íntegra:
Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;
Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;
Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;
Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;
Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;
Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...
Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...
2 comentários:
Fausto Bordalo compôs uma música para o soneto Daqui desta Lisboa. Ficou interessante.
Conheço a versão do Fausto.
Embora não seja fácil musicar O'Neill.
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