Em tempos que já lá vão, a rota de ouro do comércio mediterrânico começava
em Sevilha, tocava os portos da Tunísia e ia terminar lá longe, em Alexandria
ou em Antioquia. Era um percurso que todos os mercadores conheciam e que várias
vezes ao longo do ano tinham que percorrer. À Península Ibérica vinham buscar a
prata que faltava a Oriente. Para a Península Ibérica traziam os tecidos e os
perfumes que iriam tocar o corpo das andaluzas mais belas. Ou das mais
ricas.
Lá longe, para lá de Antioquia, existia ainda, até há meses, um pouco desse
mundo. Fica fora das fronteiras da Europa, cada vez mais longe do Ocidente. Às portas do Levante, o ar do Mediterrâneo começa a dar
lugar à aridez do deserto. É aí que começa a Síria, onde o Mediterrâneo
acaba e até onde chegam as oliveiras. A algumas
jornadas do mar fica o oásis de Palmyra e, mais para leste, a imensidão da
Mesopotâmia.
Os
nomes das cidades – Damasco, Alepo, Hama, Palmyra – estão nos compêndios de
História e habituámo-nos a ver os monumentos alinhados em páginas. A Síria
servia-nos como mostruário de volutas e de pâmpanos, como uma lição de Arte ao
vivo. A Síria Antiga guarda-se nos museus de Damasco e de
Alepo e nos das antigas capitais coloniais do Ocidente, que pilharam, com
método e eficácia, um solo inesgotável.
Muito do passado de Síria está hoje escondido em bairros recônditos ou
quase desapareceu. As cidades não são uma realidade imóvel e imutável. Menos
ainda quando falamos de sítios como este, ocupados há milénios e abalados de tempos
a tempos por convulsões, pelas dos homens e pelas que surgem das entranhas da
terra. O correr dos anos, o simples martelar do sol e da chuva se encarregaram
de fazer o resto.
Desde
há semanas que a guerra desabou sobre o passado. Uma ameaça, real e sem
remédio, pesa sobre o património da Síria. Que é, também, o património de todos
nós. Os monumentos da Síria têm um longo convívio com a guerra. As destruições
e reconstruções sucederam-se no tempo, numa região onde os conflitos são
habituais. O armamento pesado, que se tornou cada vez mais comum, de mais fácil
aquisição, de uso discriminado e com um crescente poder destrutivo é uma ameaça
maior. O exemplo do Iraque, e o saque dos seus museus após a invasão americana,
de pouco serviu. Com o intensificar do conflito na Síria é uma parte importante
da nossa História comum que ameaça ruir. Sem retorno, porque a reconstrução de
jóias como a cidadela de Alepo ou a mesquita de Damasco será uma tarefa
impossível. E sem solução, porque a História da região é complexa e pouco
linear e cada muro que se destrói são milhares de anos que se perdem. As
paredes dos monumentos da Síria contam-nos essa História e poucos episódios o
exemplificam tão bem como o da construção da mesquita dos omeias, em Damasco.
Onde
está a mesquita, esteve, há muitos séculos, um templo romano dedicado a
Júpiter, substituído mais tarde pela igreja de São João Batista. Que cedeu
depois o lugar a uma mesquita. O próprio califa al-Walid terá descido, de
archote, em punho, à cripta da igreja, aí tendo encontrado um cofre com a
inscrição “contém a cabeça de João”. Talvez hoje achemos a descrição pueril,
mas o califa não hesitou. A cabeça do santo ficou no local de origem, de tal
modo que, durante muitos anos, a mesquita adotou o seu nome, Yahya b. Zakariya,
João filho de Zacarias.
A
memória de São João Batista representa, contudo, mais do que um simples nome. O
mausoléu contendo as relíquias do santo ocupa um lugar de destaque em plena
mesquita, e não é possível deixar de reparar no cortejo de pessoas que ali se
deslocam, pedindo proteção, fazendo promessas, agradecendo benesses. São
cristãos e muçulmanos, vindos por vezes de sítios longínquos, em busca de um
auxílio que faltou algures.
Trata-se
de um caso único? Nem por sombras. A grande mesquita de Alepo tem um passado
semelhante: de agora passou a jardim
da catedral de Santa Helena e depois a local de culto muçulmano. Tal como em
Damasco, a mesquita alberga um mausoléu, neste caso o de S. Zacarias, pai de S.
João Batista. A história no Oriente é uma matrioska, uma sucessão de factos e de épocas.
Apesar das contradições, igrejas e mesquitas, minaretes e
campanários, partilham as mesmas ruas, por vezes muito perto, por vezes mesmo
lado a lado. Os cristãos continuaram nas principais cidades até aos nossos
dias, mas o peso da sua comunidade foi-se esbatendo com o tempo. Em Damasco
habitam num bairro no extremo oriental da cidade antiga, por entre uma profusão
de igrejas (maronitas, gregas ortodoxas, católicas, arménias) e dedicam
particular devoção à Virgem e a São Paulo. O nome do santo, que terá residido
na Rua Direita, bem no coração de Damasco, persiste numa capela, junto à Bab
Kaysan.
O coração de uma Síria intemporal vive em Alepo. Cerca de mil metros
separam Bab Antakyah e a cidadela. Em mil metros mergulhamos na máquina do
tempo, num souk que saiu das páginas de um texto antigo. O barulho, os pregões,
a venda de tecidos repetem-se sem cessar há muitos anos. Os vendedores, que
repartem o espaço com um rigor de geometra, têm centenas de anos. O tempo não
passou por eles porque estão resguardados do sol e da luz do dia pela penumbra
do souk. O que se vende é tão antigo como o souk, como os sabões de azeite e
palma que fizeram a fama de Alepo. O risco de se perder esse mercado vai, por
isso, muito além do valor dos muros que limitam as suas ruas. O bairro cristão
de Alepo fica um pouco mais a norte, no limite da rua da Bab Antakyah. Talvez o
elemento mais surpreendente tenha sido o contraste entre o caos e as ruas pouco
tratadas à saída da cidade velha e a limpeza, a iluminação pública e a presença
de lojas de conhecidas marcas europeias no bairro cristão.
Para
lá dos dos monumentos e da História Antiga começa a outra Síria, não menos
ameaçada pelo conflito em curso. A das montanhas do Kalaamoun, onde o aramaico
que Jesus falou é ainda entendido em duas ou três aldeias. A das aldeias
druzas, como Qalb Lozeh, a do jovem que veio ter comigo para me oferecer uma
romã, à entrada do sítio de Aïn Dara, e se apresentou dizendo apenas “sou
curdo”. Há uma outra Síria que não é dos monumentos nem dos mosaicos nem do
castelos dos cruzados. É uma Síria marcada pela diversidade, pela diferença e
pelo justificado orgulho das diferentes comunidades. É, e provavelmente,
deixará de o ser, a Síria dos cristãos, como Margarita Curché, a anciã que me
acompanhou pelas ruas do bairro cristão de Damasco, rematando, de punho fechado
e em voz alta, “aqui somos todos cristãos!”. Margarita referia-se ao bairro,
mas o seu bairro é o seu mundo, um mundo que fica junto a Bab Touma, no extremo
nordeste da cidade antiga.
Agora,
que a guerra devasta Alepo e Damasco – voltaremos a entrar no souk Hamadieh?,
regressaremos à grande mesquita?, o que acontecerá ao bairro cristão de
Jdeideh, em Alepo? – avolumam-se as perguntas e aumenta a preocupação de
estarmos a perder, para sempre, monumentos e modos de vida.
Da Damasco onde viveu São Paulo só restam o arco romano na rua que vai para
Bab Sharqi, a entrada oriental da cidade, a colunata à saída do souk Hamidieh e
algumas das paredes da grande mesquita dos omeias. Esse património físico está
em risco. O outro, que não é menos nosso, também.
A fotografia foi feita no pátio da grande mesquita, em Damasco. Um local de fé e, também, de sesta.
O texto que acima se transcreve foi publicado na edição de hoje do Público.
2 comentários:
Olá Santiago, belo texto em prol da divulgação da da História e Cultura síria e, obviamente, contra a guerra. Gostava de conhecer e possivelmente até já escreveste sobre o assunto, o que pensas do governo sírio, da chacina de homens, mulheres e crianças, e da luta da oposição. Abraço LBorrela
acho que, para quem lá luta e morre, o património vale bem pouco.
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