Os amigos próximos, e que me conhecem há muito tempo, dirão "oh, não! lá está ele, outra vez, com aquela fixação com a cidade de Tânger…". Esta crónica, publicada no dia 1 de dezembro em "A Planície" é dedicada, portanto, aos que não sabem da minha paixão por Tânger.
Foi num
memorável 1999. No ano anterior fôramos designados (o Cláudio Torres e eu)
comissários científicos de uma exposição que deveria ter lugar por ocasião da
Cimeira Luso-Marroquina. A iniciativa partira do então primeiro-ministro
António Guterres, deixando-me mais que surpreso. Com argumentos que convenceram
facilmente Francisco Motta Veiga, assessor cultural do PM, coseguimos empurrar
a exposição para Tânger. Constituímos, o Francisco, o Cláudio, a Conceição
Amaral e eu, um grupo de trabalho que se encarregou de trabalhar o tema. As
razões pessoais eram inconfessáveis e a opção Tânger causou alguma estranheza.
A cidade tinha a reputação de “complicada” e a memória da revolta do pão,
ocorrida em 1984, ainda não se apagara. Acabou por ser o sítio escolhido,
marcando-se o início do mês de setembro para o evento.
Estivera em
Tânger no outono de 1981. Não regressara à cidade. Mas guardava daqueles dias a
memória, talvez demasiado doce, dos finais de tarde, espreitados da varanda do
Hotel Velázquez. Ao longe, os ciprestes e a kasbah faziam de sombras chinesas
contra o Estreito. Mas longe ainda, e por entre a bruma, desenhava-se o
Eldorado europeu. Vinte anos depois tudo estava na mesma. O sortilégio da
cidade estava, e está, nessa imobilidade, numa quietude secular, que contrasta
com o frémito andaluz que enche as ruas no fim da tarde. Há coisas que não
mudarão nunca: a cor das águas às portas do Mediterrâneo, o vento que sopra sem
cessar e o ar decadente que da arquitetura colonial. As que se transformam,
fazem-no num ritmo lento e cerimonioso.
A
fase final da exposição foi feita ao ritmo da leitura de “Jour de silence à
Tanger”, de Tahar Ben Jelloun. O livro começa assim:
“Esta
é a história de um homem perseguido pelo vento, esquecido pelo tempo e
desprezado pela morte.
O
vento vem de leste, na cidade onde o Atlântico e o Mediterrâneo se encontram,
uma cidade feita de colinas sucessivas, enigma doce e inatingível.
O
tempo começa com o século ou quase. Forma um triângulo no espaço familiar desse
homem que, cedo – tinha 12 ou 13 anos -, deixou Fez para ir trabalhar no Rif,
em Nador e Melilla, para voltar a Fez durante a guerra e emigrar nos anos 50,
com a sua pequena família, para Tânger, cidade do estreito, onde reinam o
vento, a preguiça e a ingratidão”.
O
livro foi lido entre o Petit Zoco, os cafés do Boulevard Pasteur e o museu onde
a exposição “Marrocos-Portugal: portas do Mediterrâneo” estava a ser montada.
As palavras do autor foram, em mais de uma ocasião, inspiradoras. Perdi-me, à
custa delas e por mais de uma vez, nas vielas da cidade antiga, por entre as
sombras e o silêncio. A exposição foi um assinalável sucesso e marcou um ponto
de viragem na minha vida. Só voltei a Tânger no passado mês de março, mas
apenas por um dia. Sem tempo para retomar o caminho do bairro de Marshan, mesmo
sobre o mar. Sem tempo para passar pelo caos da cidade. Penso sempre que
poderia para lá partir amanhã e não mais voltar. Março já foi há demasiado
tempo. Tentarei regressar, um destes dias, à cidade do vento, da preguiça e do
caos. Mas não da ingratidão.
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