O episódio passou-se há muitos anos, talvez em 1971 ou
1972. Foi à hora de saída da escola primária. A escola ficava na praça, na casa
que hoje pertence ao meu amigo Francisco Manta. O meu companheiro de caminho
para casa era o António Pato Oca. Subíamos a Rua 1º de dezembro, depois a do
Poço, em direção à Porta Nova. Naquele princípio de tarde, uma animação
suplementar nos estava reservada. Mal tínhamos cruzado a porta da escola, vimos
um homem parar a sua V5 junto à parede do café do senhor Daniel Costa Rodrigues.
Desceu-se da mota e, por artes mágicas, o assento pegou fogo. Não era assim um
grande fogo, nem era bem fogo, na prática era só fumo e nada de chama mas, se
alastrasse ao resto e atingisse o depósito, adeus motorizada.
Parámos os dois a ver no que davam as modas.
Encostados à parede e fascinados com o acontecimento. Em Moura, poucas coisas
aconteciam e era preciso aproveitar cada instante. O fumo alastrava, ante a
aflição do homem. Não havia telefones automáticos e os telemóveis eram coisas
de ficção científica. A parede da casa, à esquina da Rua Santana e Costa, era
diferente do que é hoje. Onde agora está a janela manuelina do atual
restaurante havia só a parede, e uma pequena janela do café. De súbito, um
bombinho [a palavra não existe nos dicionários, mas a crónica é só para a
gente…] salta da minúscula abertura para a rua. Atrás do bombinho, aparece a
cabeça do sr. Fernando José Chaparro. Pendurado, tanto quanto podia, da janela,
gritou para dentro “liga!”. Começa a jorrar líquido. Em poucos segundos, o fumo
amainou e, se assim se pode dizer, estava extinto, para alívio do dono da
motorizada e para gáudio de todos nós. Aplausos e vivas. Estranhámos a cor
amarelada do líquido extintor. Tal como notámos, logo de seguida, um cheiro
acre e intenso na rua. Nessa altura, já o interior da taberna era uma trovoada
de gargalhadas. O sr. Fernando Chaparro, sendo o bombinho muito curto e não
chegando à torneira da água, ligara-o a uma pipa de vinho branco. A eficácia
extintora da pomada ficou comprovada. Ante as piadas e os dichotes, encolheu os
ombros “um homem tem que se desenrascar, não é verdade?”. É, decerto. Outras
contas à vida ficou a deitar o senhor Daniel, a quem a atitude determinada do
improvisado bombeiro deve ter custado uma mão-cheia de copos de três.
O sr. Fernando Chaparro deixou-nos há muito, demasiado
cedo. Este episódio, como tantos outros de tempos de infância e de juventude,
colou-se à minha memória. Pensava ter já relatado o sucedido ao meu amigo e
colega José Chaparro. Afinal não. Aqui fica, pois, meu caro José, esta breve
evocação do teu pai e do dia em que o vinho apagou o fumo.
Foi aqui, como diria o outro.
Hoje, em "A Planície"
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