Foi quase empurrado pelo Miguel Rego que, em 2003, me (re)lancei no projeto arqueológico do Castelo de Moura. Muito tempo passara desde o dia, a meio do verão de 1989, começara numa escavação que pensava então ser para toda a vida. Apesar das dificuldades que se anteviam. Calor, cansaço e aridez. Castelos são sítios reocupados. Há sempre densas camadas de entulho e as leituras que se conseguem alcançar, pouco nítidas e ao jeito de um palimpsesto, não dão para “brilhar”. Porque se escava, então? Porque, no meio dessa aridez, há dados que permitem reconstituir passos da história de uma terra. Porque a arqueologia deve fazer parte dos processos da reabilitação urbana.
A escavação foi interrompida em 1991. Pensei que para sempre. Os anos de 2000 e 2001 trouxeram mudanças na minha vida profissional. Na altura, quase não dei por isso. Mas estava a chegar a um fim de ciclo. No dia 18 de agosto de 2003 relançámos mãos à obra. A equipa era diminuta. As duas miúdas, Marta Coelho e Luísa Almeida, como técnicas de campo, mais Vanessa Gaspar, como arqueóloga que foi cooptada para este projeto. Havia ainda o pessoal do desemprego, ali colocado para nos apoiar. Foram anos duríssimos. Recordo que num dia, em 2004 ou em 2005, no meio de um desentulhamento, enchemos quatro contentores e meio. Ao todo, foram 31 m3, em poucas horas. “Você dá cabo da gente”, reclamava a Luísa. A Marta, sempre mais discreta, fechava-se num semblante de jogador de bridge.
Do ponto de vista humano, foram anos de aprendizagem intensa. Não reproduzirei as pequenas histórias que ia ouvindo aos participantes ocasionais na escavação. Fiquei com uma visão alargada da sociedade local. Das expetativas de vida. Dos anseios. Das dificuldades. Da violência de certos quotidianos. Assumi o papel de primeiro entre iguais. Nada mais simples. Sendo claro que, em momento algum, abdicaria da liderança do projeto. A relação com a Luísa e a Marta foi divertida. Não sei que diabo disseram às moças, mas, em 2003/2004, quase não respiravam quando falava com elas. Verdade se diga que nunca gostei de baldas no trabalho, nem de imprecisões na execução das tarefas. A direção de um projeto implica ouvir e ponderar. E depois decidir. Não é necessário que haja sempre consenso. Mas sim responsabilização e rigor. Ficou célebre na equipa uma explosão de fúria (minha) causada por uma indicação importante que não foi cumprida. Para gáudio das moças, descarreguei a frustração no chão, dando biqueiradas num monte de entulho...
Precisávamos de resultados e produzimos resultados. Que culminaram nos dois livros que resumem o essencial da escavação entre 1989 e 2013. Houve conclusões importantes? Sim. Sobre a evolução urbana do sítio medieval, sobre as ruturas entre o período islâmico e o pós-Reconquista, sobre a igreja de Santiago, sobre as transformações ocorridas até ao século XX… Falta conhecer muito? Falta conhecer quase tudo. A arqueologia tem destas coisas. Estamos sempre a regressar ao ponto de partida. Em julho regressamos ao ponto de partida. Uma vez mais. Não sei por quanto tempo mais, mas uma vez mais.
Andamos nisto há 15 anos. Que são, para mim, quase 30. Estaremos na mesma equipa, onde quer que andemos. Até já, sim?
Crónica publicada hoje em "A Planície"
Em 2005, algo mais magros...
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